Relíquias do funk

Live na sexta (31), lembra os 50 anos do 1º Baile da Pesada

27.07.2020 | Por: Dennis Novaes

No dia 31 de julho (sexta-feira), vai rolar uma live em homenagem aos 50 anos do Baile da Pesada. A festa, criada em 1970 pelos DJs Big Boy e Ademir Lemos, é considerada um marco na história do funk nacional. O Portal Kondzilla te conta o que foi o Baile da Pesada e traz uma entrevista com Leandro Petersen, filho do DJ Big Boy e organizador desse evento que reunirá grandes nomes da música black e funk, como Dom Filó, Corello, Mr. Paulão, Peixinho e Marlboro. Conheça agora um pouquinho da história do início do funk carioca.

Hoje em dia, basta uma breve pesquisa na Internet para escutar artistas de qualquer canto do mundo. Essa facilidade não existia nos anos 1970. Os discos internacionais eram caros e, alguns deles raramente eram encontrados nas lojas brasileiras. Fosse nas rádios ou nas festas, os DJs eram figuras fundamentais para que o público acompanhasse as novidades da música mundial. Um dos grandes responsáveis por conectar a população carioca ao que lançava nos Estados Unidos e na Europa foi Newton Duarte, mais conhecido como Big Boy. 

Professor de geografia, radialista e DJ, ele acumulou ainda jovem uma vasta coleção de discos de diversos gêneros musicais. Fã dos Beatles, reza a lenda que ele conseguiu a façanha de entrar no estúdio onde o grupo ensaiava em Londres e gravar escondido uma prévia de Let it Be, tornando-se o primeiro a tocar a música no Brasil. Big Boy também foi pioneiro ao integrar em seus sets artistas de soul e funk como James Brown e, por isso, seu trabalho é considerado fundamental para a propagação da “música black” no Brasil. 

Big Boy e sua coleção de discos

Na década de 1960, o rock e o soul tornaram-se cada vez mais populares no mundo todo. Estes gêneros musicais surgiram nos Estados Unidos em um período marcado pela luta de minorias políticas que reivindicavam igualdade de direitos. Movimentos como o Black Power e o Partido dos Panteras Negras trouxeram a luta antirracista para o centro do debate. Não só por lá como em outros países atravessados pela desigualdade entre negros e brancos. O soul e o funk, gêneros que tinham entre seus ícones artistas como Aretha Franklin, James Brown e Otis Redding, constituíram uma espécie de trilha sonora da luta por um mundo livre do racismo.

Junto ao DJ Big Boy, o dançarino e agitador cultural Ademir Lemos, criaram os ‘Bailes da Pesada’, que ocorriam no Canecão no início dos anos 1970 e agradavam à massa com as novidades do rock, funk e soul internacionais. No Rio de Janeiro, o interesse pelo soul e funk, mais especificamente, crescia entre artistas, ativistas e produtores negros mobilizados pelos ideais do orgulho negro. Festas dedicadas à música black começavam a surgir pelos subúrbios da cidade e o sucesso do Baile da Pesada serviu como uma faísca para que elas tomassem proporções ainda maiores.

Ademir Lemos e Big Boy

Apesar do sucesso, o Baile da Pesada rapidamente seria cancelado, dando lugar a um show fixo de Roberto Carlos no Canecão. Mas as músicas que Ademir Lemos e Big Boy ajudaram a divulgar ganhariam cada vez mais entusiastas no Rio de Janeiro e no Brasil como um todo. Em 1975, poucos anos depois do Baile da Pesada, dezenas de equipes de som dedicadas à “música black” embalavam cerca de 1 milhão de dançarinos negros todos os fins de semana pelos subúrbios cariocas, movimento que ficou conhecido como Black Rio. Embora os bailes black não tenham sido necessariamente uma consequência do Baile da Pesada, Big Boy e Ademir Lemos foram fundamentais para que a música negra estadunidense chegasse a paisagem sonora brasileira.

O movimento Black Rio plantou as bases do que veio a ser o funk nacional. Basta comparar as fotos dos bailes antigos com os atuais: as grandes caixas de som, os DJs comandando as festas e os milhares de dançarinos suburbanos e favelados mostram que os pilares do funk nacional foram construídos lá atrás. Algumas equipes surgidas na década de 1970 como a Furacão 2000 e a Cashbox continuaram a existir por décadas, agitando milhares de pessoas. Mais do que isso, a partir dos anos 1990 elas se tornaram gravadoras independentes e foram responsáveis por lançar uma série de MCs e DJs que fizeram sucesso por todo o país. De uma forma ou de outra, Ademir e Big Boy foram visionários e contribuíram para este movimento que mudaria os rumos da música brasileira.

Big Boy faleceu prematuramente em 1977, aos 33 anos. Seu legado, no entanto, é lembrado até hoje por todos aqueles que se debruçam sobre a história do funk nacional. Ademir Lemos ainda agitaria a noite carioca por muitos anos. Em 1989 ele atacou como MC no disco Funk Brasil que foi produzido por Marlboro e é considerado o marco do funk nacional. Ademir morreu em 1998, aos 52 anos. Sua trajetória representa uma espécie de elo entre o Baile da Pesada e o funk produzido no Brasil. A live do próximo dia 31 de julho promete reunir a nata da música black em uma bela homenagem a estes mestres.

Entre as equipes de som pioneiras do movimento Black Rio estavam a Soul Grand Prix, criada pelo DJ Dom Filó, e a Black Power, comandada pelo Mr. Paulão. Essas duas lendas estarão presentes na live não só como discotecários, mas também para um bate-papo sobre a história do funk. Corello DJ, que trabalhou na Soul Grand Prix e cunhou a expressão “charme” para descrever o estilo mais lento e melodioso de soul que virou sucesso no Rio de Janeiro, é outro confirmado. Peixinho, antigo assistente de Big Boy e DJ Marlboro, ícone do funk nacional, completam a lista de convidados. O bate-papo terá início às 20h e as apresentações ocorrerão das 21h à 1h da manhã. Abaixo, vocês conferem nossa entrevista com Leandro Petersen, filho de Big Boy e organizador dessa homenagem a estes verdadeiros patrimônios de nossa cultura.

Leandro Petersen em frente a coleção de discos do pai

Grande parte dos funkeiros mais jovens desconhece a importância de Big Boy para a história do funk e da música brasileira em geral. Como você resumiria para esse público o legado que seu pai deixou na música?

O Big Boy foi um grande propagador da música pop entre os jovens, na virada dos anos 60 para os 70. Isso se deve a basicamente dois motivos: primeiro porque ele detinha um grande conhecimento sobre a cena musical estrangeira desde a adolescência. Ele conseguia discos importados com pais de amigos que trabalhavam em companhias aéreas, sintonizava rádios americanas através de radioamador (ondas curtas), frequentava lojas que importavam discos de rock. Ele começou a trabalhar em rádio justamente porque seu conhecimento sobre rock chamou a atenção dos programadores mais antigos.

Em segundo lugar, Big Boy foi um grande comunicador. Ele sabia como se dirigir à garotada mais jovem, que era o seu público alvo. Estamos falando de uma época em que um locutor de rádio tinha que ter a voz grave, empostada. Ele rompeu com tudo isso. Seu estilo de locução era frenético, sua voz estridente, com uma sonoplastia ruidosa, tudo muito louco. Sua saudação diária aos ouvintes era “Hello, crazy people!” (Na tradução livre: “olá pessoas loucas), isso já diz muita coisa.

Essas duas características o transformaram num “porta-voz” da juventude em matéria de música. Seus programas na Rádio Mundial eram obrigatórios para quem quisesse se manter atualizado. Ele vivia buscando novidades, viajava com frequência ao exterior só para comprar discos. Ele se orgulhava em dizer que o material tocado em seus programas pertencia a seu acervo pessoal, não à rádio. Quando veio o Baile da Pesada, em 1970, o funk foi se consagrando como o estilo dominante nas pistas e ele já tinha um vasto acervo de músicas nesse estilo.

O Big Boy acumulou um acervo impressionante com cerca de 20 mil vinis. Como foi a manutenção desse acervo por tantos anos e qual o seu sentimento ao se debruçar sobre ele?

O acervo dele é realmente impressionante e, de certa forma, é o maior elo entre mim ele. Eu não o conheci pessoalmente, porque sua morte aconteceu quando eu tinha apenas 8 meses de vida, mas convivi com seus discos desde sempre. Lembro que quando eu era bem pequeno tinha uma mala grande que morava embaixo da minha cama. Um dia fui abrir e eram discos. Acho que tinham sido da última viagem que ele fez e não chegou a abrir.

Depois de um tempo minha mãe catalogou todos os LPs, lembro do mar de discos espalhados pela casa enquanto ela fazia o trabalho. Lembro também de ouvir muita música. Sempre tinha um som rolando lá em casa e isso era muito bom. Quando veio a adolescência, comecei a me interessar por rock e sempre que descobria uma banda diferente ia na estante lá de casa e os discos estavam lá. Eu tinha a coleção completa (até 1977, ano em que ele morreu) de Led Zeppelin, Deep Purple, Pink Floyd, Black Sabbath e diversos outros. Minha casa vivia cheia de amigos, que iam pra lá escutar música. Hoje eu brinco dizendo que baixo muita música. “Baixo” da estante pra ouvir no toca-discos.

Mas tem o lado difícil também. Os discos ocupam muito espaço, é preciso manuseá-los constantemente para evitar fungos. Gostaria que esse acervo estivesse num museu, é um projeto que tenho para o futuro.

Na live do dia 31 estarão presentes grandes ícones dos bailes Black e do funk carioca. O que você espera dessa reunião com tantas figuras fundamentais como Dom Filó, Corello, Paulão, Peixinho e Marlboro?

O Baile da Pesada é considerado o marco zero desse movimento dos bailes aqui no Brasil. Começou com uma temporada no Canecão com Big Boy e Ademir Lemos e depois seguiu pelos clubes de subúrbio no Rio, com o Peixinho tocando no lugar do Ademir. Quando chegou no subúrbio, exerceu sua influência sobre os frequentadores, que se organizaram e criaram suas próprias equipes de som. Os bailes funk surgem aí, através de pessoas como Mr. Funky Santos, Dom Filó, Mr. Paulão e tantos outros que criaram as equipes de som como a Furacão 2000, Soul Grand Prix, Black Power, A Cova, Dynamic Soul, Cash Box, etc.

Corello e Marlboro são da segunda geração, eram frequentadores dos bailes e depois seguiram outro caminho musical, quando a soul music já tinha perdido espaço para a disco music e as outras variáveis do funk. Reunir esse time foi uma grande honra pra mim. Mesmo faltando tantos nomes de peso, conseguimos juntar quem estava lá início do movimento com quem deu continuidade e até mesmo o ressignificou. Eu espero ouvir grandes histórias e, acima de tudo, escutar muita música boa!

Seu pai sempre exerceu aquilo que os artistas fazem de melhor: aglomerar. Poderia falar um pouco sobre como a pandemia afetou os planos iniciais pro baile e qual a importância de se fazer arte nesse contexto?

A ideia original era fazer um bailão mesmo, com essa mesma turma, num espaço grande. O projeto estava pronto e ia seguir para captação, mas veio a pandemia e tive que adaptar para a live. Vamos deixar o baile para os 51 anos, tudo bem.

Quanto à arte, acho que é fundamental nesse período em que estamos. Quantos de nós estão em casa assistindo filmes e séries, vendo lives, ouvindo música, lendo livros, enfim, consumindo arte? A arte é o que nos mantém sãos, deveria ter o seu valor mais reconhecido e deveria ser mais incentivada. A pandemia veio num momento em que o setor já sofria pelo desmonte promovido pelo governo e aprofundou muito a crise. Mas somos persistentes, iremos passar por essa também e tenho certeza de que vamos sair ainda mais fortes.

A Live acontece nesta sexta-feira, 31 de julho, às 19:00. Acompanhe pelo link.

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