Histórias que inspiram

Os reflexos do racismo na saúde mental do jovem negro

20.11.2019 | Por: Karolyn Andrade

O sentimento de não pertencimento, como por exemplo entrar em determinados lugares onde a maioria é branca porque nos disseram que lá não é o nosso lugar e a não aceitação de si mesmo, são sensos comuns que a estrutura da sociedade fez gerar dentro de nós negros. Por isso, na data de hoje, gostaria de falar sobre a saúde mental da população negra, principalmente porque eu, mulher negra, negligenciei a minha por muito tempo.

Uma cartilha publicada no início do ano pelo Ministério da Saúde mostrou que a população negra tem 45% mais chances de cometer suicídio. Frase dura demais para ser lida, afinal, estamos falando de uma grande porcentagem de pessoas em um assunto que ainda é considerado como tabu.

A invisibilidade social e suposta incapacidade junto com os processos de rejeição foram verdades que o racismo implementou dentro de mim e em toda população negra. Nós acabamos adoecendo decorrente a pressão de negociar constantemente o nosso lugar dentro das camadas sociais, por isso, chamei alguns amigos das favelas de São Paulo para passarem a visão sobre a importância da saúde mental.

Vinicius Silveira, 24 anos, estudante de engenharia, Poá – SP

O racismo se manifesta de diversas formas e muitos já foram impedidos de entrar em algum lugar. No carnaval de 2018 Vinícius estava com seus amigos fugindo de uma forte chuva que caía pelas ruas de São Paulo se abrigando na Galeria do Rock. Na correria não avistou mais seus amigos, só depois de alguns minutos procurando foi que ele descobriu. “Ele tinha sido barrado pelos seguranças [da Galeria] alegando que ele não podia entrar porque estava com bebida, mas todo mundo estava. Na hora até apontei para as pessoas dentro da galeria que estavam com bebida também, inclusive algumas pessoas brancas”, conta.

O futuro engenheiro dispara que muito brasileiros insistem em dizer que o racismo não existe, mas nós da real, basta andar nas ruas que você vai ver pessoas mudando de calçada quando vê um negro, pessoas não sendo atendidas em comércios por serem negras.

Em sua a juventude, Vinícius não teve o incentivo de artistas negros e era comum ver seus amigos alisando o cabelo para estarem na moda. Só quando cresceu que encontrou pessoas com o cabelo black, tranças, dreads, sendo quem elas eram de verdade, sem medo de ser feliz.

É notório que os debates geraram muito conhecimento, mas não ainda existem assuntos que são deixados de lado como a saúde mental. “O diálogo está longe de terminar porque ele começou agora, faz pouquíssimo tempo que entendi que cuidar de mim ia além de comer bem, fazer exercícios, comprar meus kits, [me cuidar] significa parar, respirar e respeitar o meu tempo”, conclui Vinícius.

Emily Santos, 23 anos, estudante de jornalismo, Mauá – ABC

Enquanto era estagiária Emily percebeu que o tratamento que recebia em seu local de trabalho foi racista, principalmente levando em consideração que era a única estagiária da equipe negra. Todos os outros eram de uma faculdade conceituada com mensalidades caras e elitistas, enquanto ela era bolsista de uma universidade menos conceituada no mercado. Ela via o tratamento diferente dos colegas, parecia que sempre era a pior apesar de saber que cumpria bem a sua função, a estudante não era a menos qualificada por estar ali e não recebia incentivo como as outras.

Com o passar do tempo aquela experiência foi ficando muito difícil e começou surgir crises de ansiedade. “Me sentia totalmente despreparada e desmotivada para ir trabalhar, chorava no trabalho e não conseguia me dedicar a outras coisas, por causa disso o meu rendimento na faculdade foi prejudicado junto das minhas outras relações, pois eu não tinha tempo para mais nada. Projetei uma cobrança extrema em mim”, conta

Naquele ambiente, ela sabia que estava sendo menosprezada e uma sequência de acontecimentos fizeram Emily procurar uma ajuda profissional. Ao lado de sua psicóloga chegaram a conclusão que a estrutura do racismo foi algo que a marcou, deixou e deixará marcas na sua cabeça por um tempo.

“É complicado, isso é uma coisa que a gente vivencia diariamente, o preto está muito sujeito a esse tipo de tratamento e outros tipos de experiência. A projeção de que nós somos fortes e aguentamos tudo, e o pior, a projeção que somos inferiores, isso para pessoas brancas e racistas viabiliza que o racismo seja algo corriqueiro” diz Emily.

Infelizmente por tudo isso e pela questão histórica aqui no Brasil, onde os pretos são em sua maioria pobres, não conseguimos um auxílio profissional de um psicólogo e psiquiatra tão fácil o que acaba agravando os nosso problemas mentais. “Acredito que seja um ciclo que o negro entra involuntariamente mas não sabe como sair, porque é algo que a sociedade nos força a vivenciar. Não é uma escolha e é muito frustrante você se sentir incapacitado de fazer qualquer coisa”, conclui Emily.

Michael Anderson, 27 anos, fotógrafo e designer, Poá – SP

Para Michael a questão da saúde mental é estigmatizada, não paramos para pensar nisso. O primeiro pensamento do dia é terminá-lo vivo, ele está preocupado em sobreviver e viver de verdade. Se deixarmos de lado a nossa fonte de vida, que é o mental, nós não funcionamos sem ele.

O que motivou o fotógrafo a procurar uma ajuda psicológica foi uma experiência traumática em 2018 quando sofreu um assalto à mão armada, Michael já tinha sido assaltado outras vezes mas naquela vez foi tudo pior por causa da atitude da polícia. 13 segundos depois do assalto, ele encontrou a viatura policial e relatou que tinha acontecido: “foram 4 caras em 2 motos, levaram meu celular e outras coisas, e eles [PM] não fizeram nada. No dia seguinte não consegui sair de casa, estava com muito medo de sair, muito”. Foi então que percebeu que talvez estivesse desenvolvendo a síndrome do pânico.

Só depois ele entendeu que era apenas um medo e uma decepção com a segurança pública, e isso gerou desconfiança em sair de casa até hoje. “Foi na terapia que eu descobri que o assalto foi o menor dos meus traumas. A questão da minha autoestima foi moldada pela sociedade, o fato de me sentir mediano o tempo todo. Isso vem principalmente do racismo. A ‘síndrome do impostor‘ me invade, principalmente no meu trabalho. Ainda não sinto que sou bom o suficiente, sempre me cobro. O fato de ser homossexual entra em todo esse contexto”, conta

Estudante do curso de fotografia o jovem se depara com questionamentos que não seriam feitos se ele não fosse um homem negro: “Mike, foi você que fez isso?”, “Mas como você conseguiu fazer isso?”. Da onde vem esse questionamento? “Ele abraça minhas inseguranças e todos os dias preciso lutar contra isso”, dispara Mike.

Rayane Moura, 23 anos, estudante de jornalismo, Capuava – Santo André

Nordestina nascida na cidade chamada Teofilândia da Bahia, sua mãe decidiu vir para São Paulo quando ainda era criança com todos os meus irmãos por não ter nenhuma perspectiva de crescimento na cidade.

Antes de entrar na universidade, Rayane não tinha sentido o que era racismo na pele, ela sempre estudou em escola pública na comunidade então a maioria dos alunos eram negros, seus professores também e o assunto sempre foi discutido em sala de aula, logo ela possuía a consciência decorrente também de ver acontecer coisas dentro da sua comunidade.

Em seu primeiro dia de aula na faculdade, Rayane estava sozinha porque entrou na segunda chamada do ProUni. “Quando olhei em volta lembro de ficar pensando ‘Cadê todo mundo?’ Não eram pessoas negras, não eram pessoas parecidas comigo, não era a minha realidade. Foi tão diferente que pensei que de fato aquele não era o meu lugar. No primeiro semestre tinha 5 pessoas negras em uma sala com 120 alunos, lembro também de um debate sobre cotas raciais e fiquei arrepiada com a quantidade de pessoas que não eram a favor. Era claro que aquele não era o meu lugar, era isso que eles queriam dizer”, conta.

Isso afetou muito seu psicológico, ela teve diversas crises nesse processo. É um desgaste constante, podendo elencar a quantidade de atitudes que a machucaram por dentro, como por exemplo o dia que foi cobrir o lançamento de um filme e foi seguida pelo segurança no evento. A jornalista precisou mostrar diversas vezes a sua credencial, que estava ali para trampar e não para roubar, como sempre associam o negro e isso destrói, os pensamentos de desistência acabando sendo constantes.

“É muita pressão, serei a primeira da minha família a se formar na faculdade e pensar em quantas gerações passaram sem ter acesso ao ensino superior, eles apostaram 100% em mim é necessário estar bem o tempo inteiro. E não podemos falhar pois não recebemos a segunda chance. Mas eu vou vencer, minha favela vai vencer!”, conclui.

Infelizmente ainda convivemos com relatos como esses, diariamente. Minha expectativa é esses depoimentos ajudem outras pessoas a procurarem ajuda e apoio para enfrentar essas dificuldades. Principalmente, quando se trata de saúde mental do jovem negro, quase um tabu para esse grupo. Eu já cuido da minha e espero que vocês cuidem também, para mim, fez toda a diferença para enfrentar os desafios de ser negra.

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