“Catra era um através de muitos”, por Mylene Mizrahi
Conheci Mr. Catra em 2007, por conta de um artigo que queria escrever para pensar as relações entre o funk carioca e a religião. E Catra era o artista que acionava mais ativamente os discursos em torno do divino no palco. Fiz então uma entrevista com ele e mais cinco saídas noturnas acompanhando-o em sua van que carregava a nós e a trupe de artistas. Foi ali que conheci, com Catra e seus parceiros de criação, o que mais tarde eu chamaria de “uma cidade conectada pela estética”. Propus então que ele se tornasse o nódulo da rede a partir do qual eu traçaria um mundo funk possível. Foram 18 meses de convivência diária, com ele, seus familiares, seus amigos, seus parceiros de criação. Como ele brincou ainda domingo passado, quando voei para São Paulo para vê-lo em vida pela última vez, eu praticamente me mudei para a casa deles.
Catra era isso, um conector de diferenças que até então pareciam irreconciliáveis: favela e asfalto, religião e putaria, violência e gargalhadas. A metáfora que definia o Rio de Janeiro então era a da “cidade partida”, cunhada pelo jornalista Zuenir Ventura para falar dos mundos cindidos que formavam o Rio de Janeiro. Mas com Catra e com o funk dos anos 2000 conheci um outro Rio de Janeiro. Uma cidade conectada pela estética. Um Rio de Janeiro onde as diferenças e desigualdades permaneciam, mas que, se não desapareciam em um amálgama, poderiam ser pensadas a partir de sua aproximação. Diferenças de gostos, de classe, de raça, sociais, geográficas que, contudo, não impediam a circulação pela cidade, do artista, do funk, do seu público. Encontros eram possíveis.
E Mr. Catra colocou essas diferenças em relação como poucos, por meio da jocosidade, do riso, do deboche. Com esses elementos elaborava também sobre nossa noção de cultura. Cultura, para os gostos hegemônicos, para a sociedade oficial, só poderia ser, a um certo modo, a própria cultura, os próprios valores. Mas era essa mesma sociedade oficial que lotava seus shows nas casas noturnas da Zona Sul carioca. Consumia funk mas talvez pensasse que funk não era cultura, favela não era lugar de produção simbólica. Colocava-se então a oportunidade para que Catra desestabilizasse o seu público.
No meio do show ele avisava então: “Agora pára, pára tudo! Chega de funk! Não aguento mais essa vida de funk! Funk é baderna, funk é tráfico de drogas! Agora chegou a hora cultura!”. Catra passava então a cantar suas paródias musicais, subversões erotizadas da MPB ou do rock Brasil. Manifestações culturais que de fato eram reconhecidas como cultura. Manifestações que eram assunto das secretarias de cultura, enquanto o funk era caso de polícia. Era assunto das secretarias de segurança pública. Catra poderia cantar então “Uma mamada de manhã”, versão para “Tarde em Itapoã” de Vinicius e Toquinho, ou “Adultério”, versão para Tédio do grupo Biquíni Cavadão, entre outros. Era no momento da performance que Catra exercia seu papel de crítico social com maior maestria. Usava a arte para fazer com que seu público risse de si mesmo. Das produções emblemáticas da sociedade oficial que eram agora subvertidas pelo tão maltratado funk.
Os efeitos que Catra causou sobre o mundo foram muitos. Suas músicas também sofreram releituras e apropriações. A “Adultério”, por exemplo, foi incorporada pelo forró eletrônico. Seu beatbox foi incorporado a inúmeras bases de funk. E foi por meio do beabox que o funk foi também incorporado pelo sertanejo, gerando muitas disputas e celeumas entre artistas de ambos os ritmos.
Separar Catra de Wagner, seu nome de batismo, é impossível. Catra se realizou como pessoa através do funk. Catra não nasceu na favela mas escolheu se colocar nela para a partir dela se constituir como artista e pessoa social. O mesmo vale por sua escolha de seguir pelo caminho do funk. O funk permitiu a ele realizar seu projeto artístico transgressor e permitiu-lhe também levar adiante seu projeto de vida pessoal tão idiossincrático, à margem dos valores oficiais da “sociedade hipócrita”. Valores que, se são mais fáceis de acessar por meio de suas relações com múltiplas mulheres, traduzem também uma ruptura com nosso individualismo moderno, com nossa noção de eu tão circunscrita, fechada, una. Catra era um através de muitos. Daí as muitas mulheres, os muitos filhos, os muitos parceiros. Catra não se fazia sozinho, mas na relação com muitos. Se nós estamos sempre temendo perder o pouco que temos, Catra sabia que só tinha a ganhar doando. Foi nessa posição ímpar, fora do lugar, que Catra se converteu no grande tradutor de mundos, tradutor do Brasil, mas fundamentalmente do Rio de Janeiro, ou de um Rio de Janeiro possível que talvez não exista mais.
Catra nos deixou e sem ele o Brasil certamente ficará mais triste. Ou talvez Catra não tenha aguentado esse Brasil que se afigura. Catra, o grande conector de diferenças precisou deixar o Rio para viver em paz com seus filhos e sua esposa Sílvia. Deixou a cidade que amava para deixar um Rio de Janeiro que o acharcava semanalmente, um Rio de Janeiro da ocupação, um Rio de Janeiro que, se com Catra pude pensar como conectado pela estética, hoje parece voltar ao seu lugar cindido, de cidade partida. O funk está com o ar preso, prende a respiração. Aguarda os desdobramentos da cidade e do Brasil para ver por onde ele seguirá.
Junto com Catra, um mundo se vai. Catra, o grande conector de diferenças aparentemente irreconciliáveis parece ter deixado primeiro esse Rio de Janeiro cindido para depois deixar nosso mundo terreno. Um Brasil de extremos onde não parece existir mais espaço para a conexão entre diferenças. Catra lutava contra um câncer mas parecia também cansado de lutar contra um Rio de Janeiro que não reconhecia mais como seu.
*Mylene Mizrahi é doutora em antropologia cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com mestrado em Sociologia e Antropologia também pela UFRJ. Pesquisadora como poucas da cultura baile funk, ela é autora do trabalho “A estética do funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra“.