Uma São Paulo de várias mulheres
É impossível pensar em um único perfil para representar o Dia internacional da Mulher. Idades, lugares, culturas, vivências: somos tantas e somos plurais. Passeando por essa megalópole chamada São Paulo, encontrei histórias de cinco mulheres por todas as regiões metropolitana da capital para lembrar de nossa força, sonhos, semelhanças e diferenças.
Sou da Zona Sul de São Paulo, muito perto de Embu das Artes. Se locomover por aqui sempre foi um problema. Para a Erika também. Com seus 22 anos ela acaba de se formar em jornalismo pelo Mackenzie, onde conseguiu uma bolsa e enfrentou problemas diários para realizar esse sonho. Seja a distância ou a difícil aceitação de uma faculdade de elite paulistana em conviver com uma mulher-bolsista-negra. “Sou de Francisco Morato, que está na região metropolitana de São Paulo. Para ir até o centro sempre foi uma luta, sempre tem que levantar 2h antes de todo mundo. E aí você já chega na aula cansada, esgotada e ainda tem que ficar ouvindo umas conversas de pessoas, que tipo, não sabem do esforço que você fez para estar ali. Te olham como se você não devesse estar ali.”
Transporte é um problema comum da Zona Norte e Sul, mas isso nunca foi empecilho. “Quando você está na universidade de fato, você percebe que as coisas são muito mais difíceis e que essas diferenças sociais ficam muito mais claras. Porque daí é isso, você está estudando com gente que paga quase R$3.000 em uma mensalidade, enquanto você jamais teria esse dinheiro. Às vezes R$3.000 é o valor inteiro mensal que sua família ganha e tenta sobreviver. É difícil porque você se sente um pouco deslocada, sente que aquele não é seu lugar. Às vezes você sente que deveria estar tentando fazer outra coisa, você não consegue se reconhecer nas pessoas.”
Sua determinação em conquistar seus sonhos são inspiradores. A foto acima foi feita em Franco da Rocha, município vizinho de Francisco Morato. “E é isso, tenho a bolsa do Prouni, mas também sou cotista. Às vezes eu tenho a impressão de que as pessoas ainda não se acostumaram a ver negros nesses espaços e ainda não entenderam qual é o real sentido das cotas. E aí as pessoas acham que é porque você é cotista, o caminho foi mais fácil, sabe? E isso é muito difícil. Conversar com as pessoas e perceber que elas ainda não entenderam o porquê das cotas, porque pessoas como eu merecem, sim, estar na universidade. É difícil, às vezes você pensa em desistir, mas é importante a gente marcar o nosso lugar, é importante lembrar “eu estudei tanto quanto vocês pra estar aqui! ”. E que sim, sou bolsista; sim, sou cotista; sim, sou uma mulher negra e vou continuar aqui, resistindo. Vocês queiram ou não!”
“Eu faço muitas coisas”. Foi assim que Monique, de 25 anos, resumiu sua vida. De coordenadora de um projeto fotográfico que visa o empoderamento feminino à aulas particulares de cálculo 1, cálculo 2, microeconomia 2 e sistema de informação, ela ainda tem um outlet de lingerie com uma amiga e está desenvolvendo um sex shop. Assim como Monique, eu também sou de Itapecerica da Serra, cidade que fica na região metropolitana de São Paulo. Mas nunca tínhamos nos visto. Só fui conhecê-la pelo projeto Lume, no final de 2018.
O Lume nasceu de um ano muito conturbado de Monique. Para fechar um ciclo, ela chamou duas amigas fotógrafas para um ensaio. Já que ela estava arcando com a locação, resolveu chamar mais gente. O resultado foram três dias de ensaio, duas locações, 15 meninas fotografadas e nenhuma foto de Monique. “Não deu tempo. Só de estar ali participando e organizando todas as coisas…eu gostei muito de trabalhar com aquilo.”
Aquela experiência foi o empurrão pra nascer o Lume. “A gente sempre fala que a fotografia é uma maneira de você se expressar, é uma maneira de você colocar seus sentimentos. Muitas meninas chegam pra gente falando sobre beleza” “quero me sentir bem comigo mesma”, “quero me reconectar”, “quero entender o que está acontecendo”, e eu sempre falo para as meninas que não é preciso estar bem 100% com seu corpo pra poder fazer a foto, que você só precisa querer expressar isso de alguma maneira. E é isso que a gente quer mostrar, que a fotografia não é só para modelos, não é só para uma pessoa se olhar e ver o melhor dela. É para ela olhar e entender que ela passa por momentos ruins, mas que mesmo dentro de momentos ruins ela consegue transformar aquilo em arte, ela consegue fazer algo bonito disso.”
Nivia, de 33 anos, se considera uma mulher de privilégios: além de saber falar inglês, ela já morou em Londres durante um ano. “Eu sou uma parte bem pequenininha da população”. E de fato é: de acordo com um levantamento feito pela British Council, apenas 5% da população brasileira sabe se comunicar em inglês.
Mas para mudar isso, Nivia coordena um projeto que quer minimizar essa cadeia que favorecem uns mais que outros. O Voice – Inglês Para Elas ensina a língua inglesa gratuitamente para mulheres da cidade de São Paulo. No espaço físico do Projeto Viver, situado em Paraisópolis, ela me contou o porquê de só mulheres. “A gente tem que perceber, socialmente, o quanto as mulheres são invisíveis. Começa pelo mercado de trabalho, se você tem dois currículos idênticos, o fato do dono de um deles ser uma mulher já dificulta um pouco. A gente sabe que empresas não contratam mulheres que têm filhos, mulheres que possam ter filhos, grávidas. Fora quando acham que homens são mais inteligentes, mais produtivos e mais focados que mulheres. Então a gente sabe que o fato delas poderem aprender inglês é algo que vai acrescentar nesse currículo.”
O projeto em princípio foi idealizado por sua prima, Amanda Areias, mas passou por suas mãos em agosto de 2018, junto com um time de mais de 30 professores. Cada conquista das alunas é comemorada. “Tem muitos depoimentos aqui que me emocionam muito, me deixam muito feliz! Quando elas falam “eu li na minha camiseta uma coisa que não era o que eu gostaria de estar vestindo”, ou “Ah, eu gabaritei o ENEM na parte de inglês”. Gente, olha isso! É incrível! É isso que é nosso combustível aqui, são os resultados. Independente se elas conseguem ou não o emprego, mas é essa confiança. Elas se descobrem, se redescobrem, elas ficam amigas uma das outras, e nossas amigas também. É uma partilha mútua, sabe?”
Nivia explicou que no meio de tantos resultados positivos com a língua, o mais importante no final é o ganho com a auto-estima. “Aprender uma nova língua para nossas mulheres da Voice, é você abrir uma porta. É você poder mostrar para elas que não é uma questão de capacidade, é uma questão de possibilidade. Sim, você pode aprender mais. E aqui elas acabam percebendo que elas podem adquirir outros conhecimentos. Não só da língua inglesa, mas uma série de coisas que elas talvez elas tenham aprendido que não sejam para elas.”
Amanda, de 43 anos, tem uma história parecida com a de muitas outras mulheres. Após uma separação, criou seu filho sozinha. Ela, que nasceu no Ceará, encontrou em sua mãe um exemplo para enfrentar o dia-a-dia. “Acho que essa força de ir atrás, de buscar, de lutar e de não se sentir intimidada com a luta, eu vi nela. De não ser só mãe, mas também de suprir as necessidades. Porque não basta ser só mãe, precisa participar, né?”
Após a separação, ela encontrou na profissão de auxiliar de enfermagem uma possibilidade de sustento e educação de seu filho. Hoje ela é moradora da zona leste e trabalha no centro de São Paulo, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde seu filho estudou. “Eu vejo assim, uma coisa que acontece muito é a mulher ficar sozinha e ficar com o filho. Não sei se eles teriam a mesma coragem que a gente têm. São poucos que educam, que ficam só e tem a mesma força pra ficar ali: cuidar e educar bem, e fazer com que eles se encaminhem para um caminho do bem. Eu sei que é uma luta muito difícil, mas acredito que Deus que nos dá a força que precisamos para poder enfrentar essa luta. Tem hora que você pensa” “como eu gostaria de ter alguém para poder dividir”. Tudo é você: você tem que dar bronca, tem que dar amor, tem que ensinar. E às vezes você se sente cansada.”
Segundo dados do IBGE de 2015, o Brasil ganhou mais de 1 milhão de famílias compostas por mãe solo em um período de dez anos. No caso do filho de Amanda, o registro paternal existe, mas a inexistência da figura é a mesma. “Como um pai pode ter um filho e não pensar “será que meu filho almoçou hoje?”, “será que meu filho foi à escola hoje?”. Como pode não pensar “se eu ganho x, eu vou dividir: metade é meu, metade de meu filho”?. Muitas vezes eles pensam que esse dinheiro vai pra mãe, pra mulher usufruir. E não que ele tá ajudando o filho, que ele tá fazendo a parte dele de pai.”
Para sair de Franco da Rocha e ir até o centro de São Paulo, Thais leva em média 1h30min. Entre ir até a 25 de março comprar os produtos para trançar cabelos e ir em cada casa de suas clientes, ela encontrou em sua profissão muito mais que sustento. Encontrou independência, autonomia e liberdade.
“Você se sente à vontade para contar sua história?”. Após um suspiro profundo, Thais sorri e balança a cabeça de forma afirmativa. “Meu pai era alcoólatra. Na época, a gente morava na periferia de Guarujá, em uma ilha isolada, que tem até mangue. Minha mãe um dia falou “Vamos embora!”. A gente foi para Franco da Rocha, onde a família dela morava. Em Franco, meu pai começou o tratamento, mas nesse meio tempo ele faleceu, e eu só tinha uns 8 anos. Isso desestabilizou toda a minha família. Minha mãe não teve estrutura.”
Com isso, Thais teve que aprender a se virar desde muito nova, e ela acabou morando com sua avó. “Eu tenho um irmão, ele tem 21 anos hoje, mas na época ele devia ter uns 4. Minha mãe ficou zoada, 2 meses de cama, sem levantar. Eu tive que aprender a cozinhar, tive que aprender a levar meu irmão na escola. Tive que aprender tudo.”
Nessas idas e vindas da vida, sua mãe conheceu um homem e sua avó acabou falecendo. Thais foi morar com sua mãe e seu padastro. “Aqui entra a parte mais tensa. Foi conviver com um cara que nunca tinha visto, o cara mais escroto que eu conheci. Até hoje ele está com minha mãe. Eu sofri assédio, eu passei a adolescência inteira com ele inventando história, e minha mãe acreditava e me expulsando de casa. E eu tinha que ir para casa de tio, casa de fulano, casa de amigo. Nisso percebi que eu dependia de mim. Ou eu me tornava independente, ou ficava zoada. Tipo, ficar jogada na casa de alguém. Eu sempre trabalhei por conta disso. Comecei em shopping, trabalhei de babá, trabalhei entregando panfleto, já limpei casa dos outros. Já fiz de tudo, e fui me mantendo assim. Até hoje, até eu falar “chega, eu vou fazer o que eu gosto, o que eu sei fazer”. Se eu sei fazer isso, deve servir pra alguma coisa. Foi quando eu comecei com as tranças e com a música. E fui me virando e comecei a enxergar as coisas de outra forma, e minha vida mudou.”
Entre as zonas norte e sul, as histórias não são as mesmas. Viver em uma São Paulo de possibilidades e portas fechadas, sendo mulher, é encontrar força em outras tantas: seja por ocupar lugares ou por fazer o que se quer fazer. Sobreviver em um lugar como São Paulo é perceber que nossa voz, nossos corpos e nossas narrativas são, também, uma forma de resistência.