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Um ano após massacre de Paraisópolis, comunidade, advogadas e articuladores do funk clamam por justiça

01.12.2020 | Por: Gabriela Ferreira e Ligia Hipólito

Na madrugada do dia 1º de dezembro de 2019, o Baile do Dz7, em Paraisópolis, favela com mais de 100 mil habitantes na cidade de São Paulo, foi interrompido por uma ação policial. Nove jovens de 14 a 23 anos perderam suas vidas na operação. Desde então, a comunidade, tomada pelos sentimentos de luto e indignação, se mobiliza para pedir que a Polícia Militar do Estado de São Paulo se responsabilize pelas mortes. 

À época do ocorrido – chamado de Massacre de Paraisópolis – moradores relataram que a polícia tentou dispersar o baile várias vezes durante a noite com bombas de efeito moral, até bancarem uma postura ainda mais truculenta, coagindo a multidão sem que houvesse espaço para recuar (há registros em vídeo pela internet). A PM-SP alegou que a invasão na favela foi fruto de perseguição a dois suspeitos em uma moto, que teriam atirado contra seus agentes. A versão, no entanto, não apresentou provas, e a corporação declara sigilo nas investigações. 

Vítimas do Massacre de Paraisópolis

O laudo da Polícia Técnico-Científica apontou que a causa das mortes foi asfixia mecânica, provocada por sufocação indireta, provavelmente em decorrência do pisoteamento. A Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo afirmou em relatório oficial que as mortes sucederam da ação policial; os PMs envolvidos foram afastados das atividades. Contudo, o documento destaca que eles “agiram em legítima defesa”; e ainda cita corresponsáveis pelo massacre, entre eles, os pais e responsáveis pelos jovens que foram assassinados. 

“Infelizmente a postura da corporação através da (in)conclusão das investigações não surpreende. A desresponsabilização de seus agentes, em verdade, funciona como parte das ferramentas de manutenção da necropolítica no Brasil, corroborando para que o assassinato violento de pessoas negras e periféricas entre apenas para as estáticas da impunidade. Lamentamos que, um ano depois, a corporação que tem por lema ‘servir e proteger’ só consiga individualizar as condutas, desresponsabilizando o Estado ao culpar os pais e responsáveis dos jovens que morreram naquele fatídico dia”, avalia Silvia Souza, advogada especializada em Direitos Humanos, Diversidades e Violências pela UFABC.

A também advogada Juliana Souza, especializada em processo constitucional e direitos fundamentais pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), reitera a necessidade de revisão de conduta e abordagem da PM-SP:  “É urgente o aprimoramento dos mecanismos de controle e fiscalização da atividade policial, bem como voltar o olhar e as práticas para uma lógica de segurança pública cidadã. É inadmissível que o Estado brasileiro siga com a pandemia de mortes, sem qualquer constrangimento ou responsabilização dos agentes propulsores desta engrenagem”.

Imagem das manifestações de dezembro de 2019, em Paraisópolis

“A melhor opção seria reestruturar os bailes”

Um ano após o episódio, o inquérito que investiga o caso caminha com poucos avanços no Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), e Paraisópolis segue pedindo por Justiça. O sentimento é de abandono, conforme relata Gilson Rodrigues, presidente da Associação de Moradores do local: “Percebemos que, apesar de toda a repercussão, o governo não cumpriria as promessas que fez de investimento para que ações policiais como aquela não acontecessem de novo. Foram prometidos parques, espaços de cultura e a estruturação dos bailes. Nada aconteceu, e nosso olhar diante disso é de um governo que não enxerga a favela e busca por um processo de marginalização para não fazer o que deveria”. 

Logo após o massacre em 2019, a população protestou contra as mortes de Paraisópolis

Gilson acredita que a melhor opção para a comunidade seria estruturar os bailes: “O governo não tem sido inteligente com relação aos bailes funk; eles acontecem em várias favelas do Brasil. Nas festas de classe A, o funk é o gênero mais tocado. Aqui na favela, ele é marginalizado. Reestruturar os bailes ajudaria a crescer o comércio, o movimento de pessoas e o consumo. Ideal seria aproveitar esse movimento cultural para alavancar a comunidade e o empreendedorismo, além de criar condições para que esse evento gere outras atividades para artistas e produtores. Criminalizar o baile só tem feito com que os problemas aumentem. É importante dizer pra sociedade que não devemos nos dividir por muros, por bairro rico x bairro pobre, por cor. Temos que nos reunir pra transformar o Brasil. Ele é rico, diverso e tem muita cultura, que precisa ser valorizada, reconhecida e aprimorada”

O que mudou no baile da Dz7 pós massacre

Fernanda Souza, professora, comunicadora e frequentadora do Dz7, estava no dia do massacre e lembra das cenas de terror que passou com os amigos: “Quando entramos numas das ruas principais, Ernest Renan, onde algumas vidas foram interrompidas, deu uma dor enorme no coração. Era pra ser só mais uma noite de diversão”. 

“Depois disso, eu e meu pessoal ficamos pelo menos uns dois meses sem ir para baile, principalmente Paraisópolis. Ficamos com muito trauma do que presenciamos, medo de perder a vida como se fosse nada, mas depois retornamos. O baile passou a ter hora pra começar e acabar. Nunca mais passei um baile em Paraisópolis sem lembrar do dia das mortes. Ainda hoje, às vezes, quando ouço qualquer som estranho, já me vem na cabeça… A parada da injustiça é uma constante também, já que nada foi feito. Ficou nessa impunidade”.

Descriminalização do funk

Imagem das manifestações de dezembro de 2019, em Paraisópolis

“O processo de criminalização do funk é parte de um todo maior, ou seja, o processo de criminalização das corporeidades negras e periféricas, principalmente. Ocorre assim historicamente com a capoeira e o samba, por exemplo. As respostas para tais situações podem ser encontradas na forma como estão organizadas nossas bases culturais, sociais, políticas e econômicas; uma sociedade racializada que renega e busca apagar tudo que contraria a ‘normalidade’ branca. Compreender a criminalização do que é visto como ‘subversivo’, ‘perigoso’, ‘animalesco’ remonta aos primórdios da formação de nossas cidades, em que resta aos corpos ‘indesejáveis’ viver às margens, onde não há garantia de direito à cidade, tampouco moradia digna – oferta de espaços públicos de cultura, esporte e lazer, arruamento, saneamento básico, iluminação pública, saúde e educação públicas”, explica a advogada Juliana Souza. 

Reconhecida a estrutura que criminaliza, é fundamental que sociedade e poder público implementem ações reparatórias. Nesse sentido, Bruno Ramos, Articulador Nacional do Movimento Funk, faz uma crítica propositiva para a descriminalização. 

“Tenho dito isso com muita frequência: o fato de o funk ser tratado majoritariamente pela pasta de segurança pública é ao mesmo tempo causa e consequência da estigmatização do movimento, a ideia de que todo bandido é funkeiro e todo funkeiro é bandido. O preconceito generalizado data dos anos 1990; a criminalização acontece em casos como do DJ Rennan da Penha e Mc Cabelinho; e o extermínio é notório em casos como Paraisópolis. Estigmatização, criminalização e extermínio: essa é a trinca que a favela recebe do poder público. Por isso, eu defendo que o movimento receba atenção de várias pastas do governo e da prefeitura. 

– Secretarias de Cultura e de Planejamento urbano: faltam espaços adaptados para que a molecada curta tranquilamente, sem obstruir as vias da favela;

– Secretaria de Finanças e desenvolvimento: a economia está muito presente na questão do funk. Os fluxos são problema e solução pra quebrada, uma vez que a venda de bebidas e comida é responsável por boa parte da economia informal do território; 

– Secretarias da Mulher e da Saúde também poderiam atuar para auxiliar os jovens, já que uma das razões da criminalização se respalda justamente no abuso de álcool e drogas e na pouca informação na hora de prevenir DSTs e a gravidez precoce. Ou seja, como todos os territórios da cidade, a favela precisa de uma atenção transversal do poder público e isso passa por reconhecer o funk como o movimento cultural que é e os favelados e faveladas como sujeitos de direitos”.

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