Trabalho Indesejado
Pensando em refletir melhor o espírito do jovem na periferia, pedimos a colaboradora Bruna Tamires um conto rotineiro. Entre as diversas histórias da escritora, uma delas caiu no Portal KondZilla. Confira:
Na quebrada é assim, para a raiva de muita gente, nós não estamos morrendo de fome. Toda família trabalha duro e aos finais de semana damos um jeito para que todo mundo fique junto. As escolas são públicas, não tem dinheiro para hospital particular, mas não estamos na miséria. A única coisa que realmente não podemos é praticar a ostentação, comprar o supérfluo da melhor qualidade. Digo, nem todos podem, algumas pessoas podem, e é aí que começa o problema.
Quando se fala em moradores de periferia colocamos todas estas pessoas numa mesma caixa, como se todo mundo fosse igual. Mas a gente sabe que não é. Tem a favela, tem o prédio particular, tem os conjuntos habitacionais, tem as casas pequenas e simples e também tem as ruas dos casarões, todos eles cercados e monitorados. Cada quebrada é um universo próprio.
Me lembro de quando era mais nova. Eu ia da casa de um amigo para outro, sempre aumentando o bonde até chegar no parque. Não tinha essa de trabalhar e o tempo livre, sempre depois da escola, permitia os melhores rolês. A moda na época eram as roupas de surf, todas aquelas cujo nome a gente pronunciava errado mas eu não queria nem saber disso. Do boné ao chinelo, passando pela calça e se cobrindo com o jaco. Era isso que a gente queria. E queria demais. Mesmo de classes diferentes na mesma quebrada, nós andávamos juntos, assim, não foi difícil acompanhar o caminho de cada colega na busca da sapatilha do momento, do boné mais chave, do óculos espelhado e, principalmente, daquele tênis de marca.
A Vitória, que morava na rua de cima, começou com 16 anos a trabalhar na loja de surf do shopping daqui de perto. Me lembro da gente passar andando e ela estava lá, das 13 às 17 horas parada na frente da loja com as mãos para trás, esperando alguém ir olhar a vitrine. O tempo foi passando e ela foi ficando cada vez mais tempo lá. Se promovendo e mostrando pra gente (nos seus raros dias de folga) as roupas novas que a dona da loja dava para ela como complemento do salário.
Com o Ícaro foi diferente, ele só ligava para as roupas porque gostava mais de moda do que de marca. Ele começou no segundo ano a trabalhar numa empresa de telemarketing, foi aí que perdi um amigo. Todos os dias, até de sábado, ele estava trampando, justamente nas horas de se divertir. Com a grana do trabalho ele não precisava ajudar em casa, gastava com roupas e óculos de sol. Algumas vezes eu até achei bonito aquele luxo todo. Mas sentia muito a falta dele, ele conseguiu o que queria mas não tinha tempo de mostrar pra gente. Ficava em dúvida do quanto valia a pena aquele trabalho.
É sempre difícil entender essa vontade. Eu nunca gostei de empregos sem sentido, falo mesmo, mas também nunca gostei de pedir pros outros, então eu aproveitava meus aniversários para ganhar aquela roupa daora ou aquele tênis firmeza, renomado. Esses eram os únicos momentos em que eu conquistava tais produtos. O que nem sempre dava certo, nunca saía exatamente como eu desejava, mas o nome da marca estava lá. Essa era a minha forma de ter aquilo que eu queria.
Para além do Ícaro e da Vi, outros amigos buscavam alternativas para o consumo. Sempre teve um, bem camarada, que preferia ir na rua dos condomínios e levar para si os bonés, os óculos e os tênis dos boys da quebrada. Eu não achava nada. Depois de tanto tempo querendo ter e não conseguindo ter, eu peguei raiva dessas roupas. Afinal, para mim, tudo isso servia: ou para nos colocar em trabalhos exploradores ou para acabar com a grana suada dos nossos pais ou, e o pior, para fazer muito cara passar temporadas e mais temporadas na fundação casa.
Como eu disse antes, a gente não passa fome, mas sempre teve muita vontade, às vezes algumas necessidades não eram tão necessárias. Da moto ao sapato; da trança ao casaco. O certo é que a gente merece ter as melhores coisas, porque somos gente e dignidade é fundamental.
A saudade dos meus amigos nas minhas tardes de adolescente era algo constante. Já parou para pensar quanta coisa nós realmente precisamos e quanta coisa nós queremos apenas para mostrar que temos?
Num sábado marcamos de nos encontrar, depois de longos anos, eu, Ícaro e Vitória. Nos encontramos na praça do parque, curtimos o dia e relembramos diversos casos da época de adolescente. Estávamos todos muito diferentes, parece que não, mas o tempo passou para todo mundo. O que não passou, foi a moda dos produtos, agora a moda eram os celulares. Aproveitamos o dia assim, meio em vida meio na tela, mas foi bom, muito bom, reencontrar meus amigos.