Sérgio Vaz fala sobre música, juventude e periferia
A poesia está muito mais próxima do funk do que você pode imaginar. E foi trocando uma ideia com Sérgio Vaz, 53, que chegamos a essa conclusão. Poeta e escritor paulistano, Vaz tá na ativa desde 1988 e já lançou mais de 10 trabalhos. Ele também é um dos fundadores da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), responsável por diversos eventos culturais espalhados pelas periferias de São Paulo, e foi eleito pela revista Época um dos 100 brasileiros mais influentes do ano de 2009. O poeta recebeu o Portal KondZilla na sua casa, na Zona Sul de São Paulo, para falar sobre a sua trajetória como personagem de destaque na periferia, juventude, baile funk e muito mais, saca só:
Alguns trabalhos do poeta. Foto: Divulgação // Sérgio Vaz
Portal KondZilla: Depois de tantos trabalhos, você se considera uma referência para molecada da periferia de São Paulo, que sonha em trabalhar com arte?
Sérgio Vaz: Na verdade, não sei se sou essa referência toda aí, porque é tanta gente trabalhando que eu me considero um tijolo nessa grande muralha. Sou só mais um que acredita na quebrada, que vive por ela e trabalho por ela.
KDZ: Como surgiu esse seu interesse pela literatura?
VAZ: Meu pai veio pra cá [São Paulo] nos anos 70, veio morar na região do Jardim Guarujá (Zona Sul), perto do Parque Santo Antônio, e trouxe o hábito da leitura com ele. Eu, como todo garoto da periferia, queria ser jogador de futebol, ainda mais nos anos 70, mas acabei me apaixonando pela leitura. Não sei se pela timidez, pois me considerava um cara diferente, ou porque era um cara que lia e ia falar direitinho com meus amigos, daí eles falavam: “ó lá o Sérgio xarope e pá”. Hoje, o mundo tá muito mais aberto, a cultura tá muito mais difundida, mas na minha época era quase uma vergonha você ler.
Com 17 anos eu já escrevia, mas tinha até vergonha de ser poeta. Com o tempo, quebrei isso e em 1988 escrevi meu primeiro livro, Não sabia nem como lançar um livro, como um cara lançava um livro na quebrada, em 1988? Quem vai comprar essa porra? Foi o primeiro choque que tive. Daí, comecei a pensar que precisava de coisas pra minha comunidade e queria pensar em algo que pudesse ser algo produtivo pra comunidade, foi então que surgiu a ideia da Cooperifa.
KDZ: Conta mais desse momento, como surgiu a ideia?
VAZ: Em 2000, estava lendo sobre a Semana de Arte Moderna e falava sobre antropofagia, que era pegar a cultura europeia e traduzir para brasileira, daí pensei que poderíamos pegar as coisas do centro da cidade e transformar em periféricas, uma antropofagia periférica. Eu estava acostumado a ver shows no Bexiga, e pensar: “Por que não tem isso na quebrada?”. Tinha um amigo que cuidava de uma fábrica abandonada e logo tive o estalo que aquele espaço era ideal para fazermos algo. Sonhador é foda, vê uma nuvem e já acha que vai ter enchente. Foi assim o ponta pé inicial da Cooperifa, que hoje tem diversos projetos e o grande destaque é o Sarau da Cooperifa, que já passou por vários lugares e hoje reúne centenas de pessoas toda terça-feira no Bar do Zé Batidão, no Jardim Guarujá.
Dia de Sarau da Cooperifa é dia de festa. Foto: Ricardo Vaz
KDZ: Hoje, a Cooperifa e seus trampos são destaque no Brasil inteiro. Em qual momento você percebeu que aquele sonho do passado tinha virado algo relevante?
VAZ: Teve um momento que o Marcelo Rubens Paiva fez uma matéria para Folha de São Paulo, e foi meia página falando sobre a Cooperifa, ainda no começo. Sarau sempre existiu, mas o que é isso na periferia? As pessoas pensavam assim, e foi quando a galera começou a falar mais da Cooperifa. Também teve um segundo momento, foi quando o cara vendeu o bar onde fazíamos o sarau antigamente e não avisou nada pra ninguém. Cheguei lá e tava todo mundo chorando. Aquelas lágrimas fizeram eu entender que aquilo era algo importante pra nós, era algo feito por nós e para nós, extremamente periférico.
KDZ: Mas a periferia e os jovens nunca foram, digamos, amigos da literatura, da poesia, das artes em geral. Como fazer o jovem consumir essas coisas?
VAZ: A literatura sempre foi o tom do privilégio, hoje ela come na mão da molecada. Isso derruba por terra aquele negócio que o jovem não gosta de ler. O jovem sempre não gosta de nada, quem gosta são os adultos. Isso prova que o jovem gosta de tudo, só que precisa apresentar pra ele do jeito que ele gosta. A Cooperifa é onde a poesia desce do pedestal e beija os pés da comunidade.
Uma vez, fiz um trampo na Fundação Casa [antiga FEBEM], e lembro que vi os jovens sentados, acanhados. Perguntei quem gostava de poesia. Fizeram uma cara meio assim e tal, daí falei que ia recitar uma poesia de um amigo meu e comecei a recitar Nego Drama, do Racionais MCs. Daqui a pouco começou um burburinho, todo mundo foi recitando comigo, até que um deles falou: “pô, isso não é poesia, isso é Racionais”. Eu disse que aquilo era poesia também, e o garoto respondeu: “então a gente gosta”. Na hora tive a certeza de que as pessoas gostam de poesia, mas não sabem que gostam. E imagino que seja assim com outras artes
KDZ: Você também trabalha nas escolas, certo? Como é a recepção da molecada com a poesia? É algo novo no cotidiano deles?
VAZ: Acho que já não é mais novidade, a grande surpresa é que o cara que tá na escola pública, numa quebrada, ele imagina que os escritores já morreram. Outra novidade é que o escritor que tá ali, vivo, se parece com ele de alguma forma.
Foto: Divulgação // Sérgio Vaz
KDZ: Com toda sua experiência, como você vê a atuação da juventude de hoje em dia na sociedade?
VAZ: Acho que temos uma geração mais inteligente, mais aguerrida, mais empoderada. A minha geração veio da ditadura militar, tinha que lutar, mas tinha mais medo de fazer as coisas. Acho essa geração mais livre, não sei se para o bem ou para o mal. Também são mais informados, pois imagina que o cara, tempos atrás, para fazer um disco, precisava da gravadora, pagar um jabá pra rádio e tal. Hoje, ele faz o CD da casa dele, põe no YouTube e faz sucesso. Essa geração não pede licença, ela faz e pronto. Acho isso o máximo! Isso que também emputece os mais velhos.
KDZ: Como é a relação da sua vida com a música?
VAZ: Música é tudo. Eu venho dos bailes blacks de SP, até me emociono em falar disso. Eu aprendi a beijar ouvindo Marvin Gaye. E a música negra americana era o que vinha pra nós, não vinha Chico Buarque. Eu cresci nesse ambiente, e a música fez a trilha sonora na minha vida.
KDZ: Falando mais especificamente do rap, você já participou de trampos com o Criolo, GOG, Mano Brown. Você tem uma afinidade especial com essa galera?
VAZ: Tenho uma relação de admiração e respeito. Quando comecei a fazer poesia, eu fazia os cartões postais e distribuía em porta de show de rap, então tenho uma relação diferente com o hip-hop.
KDZ: O Sérgio Vaz também consome funk?
VAZ: Eu sou muito fã dos MCs Junior e Leonardo, são meus parceiros e conhecem muito da cultura do baile funk. Sou um cara muito intenso. Gosto do MC Guimê, do MC Galo, do MC Smith, Claudinho e Buchecha… Na verdade, eu consumo de tudo.
Foto: Divulgação // Sérgio Vaz
KDZ: Como você vê a importância do funk para quebrada?
VAZ: O funk é a literatura das ruas, é uma aula de história. Quer entender o que tá acontecendo na periferia? Ouça funk. Não é preciso ser muito politizado, ler vários livros, nem nada. As pessoas criticam o funk, o funk ostentação. O sertanejo universitário fala as mesmas coisas, mas não é som de preto e favelado.
KDZ: Seu começo foi vendendo livro “de porta em porta”. Hoje temos o Facebook, Instagram, Twitter. Como você vê essa contemporaneidade?
VAZ: Acho que isso ajudou a gente a derrubar muros, as redes sociais ajudaram muito nosso trampo. É difícil o cara ir numa livraria pra comprar meu livro, mas ele vê minha poesia no Facebook, e ali você não pede licença pra ninguém.
KDZ: E como é ver seu trampo conhecido pela massa?
VAZ: Ah, cê tá doido? Eu sonhei com isso. Quero escrever pro mundo. Eu sou do gueto, mas eu quero o mundo. Eu não posso fingir que não gosto. Quando você faz uma arte, você quer que as pessoas vejam. Acho o máximo quando compartilham, quando criticam. Eu acompanho assiduamente minhas redes sociais.
KDZ: O Sérgio Vaz já rodou o mundo levando seu trampo, criou a Cooperifa, diversos projetos culturais. Pra gente finalizar o papo, o que mais o Sérgio Vaz quer fazer?
VAZ: O que eu quero é ver meu povo feliz, acho que a gente precisa é colocar um pouco de poesia, de dramaticidade, de beleza naquilo que a gente fala e faz.
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