O que eu aprendi na aula do Racionais MC’s
E realmente ontem foi um dia histórico pra educação brasileira! Nesta quarta-feira (30), o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-Unicamp, recebeu os Racionais MC’s para uma aula aberta sobre “Tópicos Especiais em Antropologia IV: Racionais Mc’s no Pensamento Social Brasileiro”. Apesar de ter sido a primeira vez que o grupo faz uma palestra em uma universidade pública, é fato que já há muito tempo os Racionais vem sendo nossos professores.
Quem mora na quebrada sabe que as músicas dos Racionais são tidas como mantras sagrados que nos alertam sobre as problemáticas sociais de um sistema racista, classista e opressor, e seja direta ou indiretamente, acredito que da década de 90 pra cá não haja crianças periféricas que não tenham crescido ouvindo o som dos artistas, seja tocando no barzinho da esquina, na casa de um amigo, familiar, ou até naquele carro rebaixado que passa com o som no último volume.
Quando reflito sobre toda a importância e contribuição dos músicos para nossa sociedade, automaticamente me lembro da minha infância e como o meu senso crítico foi despertado pelas letras do grupo. Na época, a minha mãe, que é uma senhora mineira, evangélica e que sem estudos veio pra São Paulo na busca de uma vida melhor, não gostava muito do que era falado por enxergar como “música de maloqueiro”, mas independente do que era dito na música, aquela realidade era a que a gente via e vivia.
Diretamente do Guarapiranga, bairro da zona sul de São Paulo, eu sou uma mina de 24 anos que cresci ouvindo Racionais e fui influenciada por toda narrativa contada em suas letras para entender o meu lugar no mundo. Comecei a trabalhar de forma fixa com 13 anos e desde então eu me questiono sobre a falta do básico. Durante a aula na Unicamp, Mano Brown fala sobre o combustível que fez com que ele tomasse uma atitude contra o sistema, e quando ele falou que o combustível era “raiva”, isso me fez perceber que talvez um dos sentimentos mais poderosos para mudar a nossa realidade seja a raiva, a revolta.
“O gatilho de tudo foi indignação, ódio, fome. É um sentimento humano, né? É digno. Raiva é digno, ódio também é. Se eu tivesse contente com a minha situação, estava lá até hoje, se me sentisse amado pelo Brasil morando naquele lugar que morava, mas eu me sentia rejeitado. Rejeitado desde a raiz pelo próprio pai, então por aí vai”, disse Brown.
Mesmo que hoje toda a contribuição de Ice Blue, KL Jay, Edi Rock e Mano Brown seja reconhecida por meios acadêmicos, lá atrás a história era bem diferente. São incontáveis as vezes em que os caras sofreram represálias por denunciar a realidade vivida nas favelas brasileiras, mas toda essa opressão culminou numa geração que aprendeu a olhar as problemáticas sociais por uma perspectiva crítica e evidenciar a vida cotidiana a partir das experiências vividas e observadas. O rap ensina. E assim como eu, várias pessoas de quebrada carregam a vivência das ruas, uma vivência que ensina a lutar por uma sociedade com justiça social e racial, a lutar por ampliação e garantia de direitos e construção de um mundo melhor.
Em uma de suas falas durante a palestra, o mestre KL Jay diz: “O rap tem esse dever, dar voz a quem nunca teve voz”, e analisando Racionais Mc’s no Pensamento Social Brasileiro, sabemos que o grupo cumpriu muito bem essa missão. Muito mais do que um quarteto, os Racionais se tornaram um símbolo de resistência pra toda uma comunidade, mostrando que a gente não só pode como deve ocupar todos os espaços. Eu poderia ser só mais uma no meio da multidão, mas resolvi me tornar um elo na corrente, um elo que busca representar não só a si, mas a todo um povo. E se lá atrás meus pais não tiveram educação básica, hoje graças ao rap tive a oportunidade de ser a primeira da minha família a entrar numa universidade.
Sendo assim, acredito que pra qualquer mano ou mina de quebrada que cresceu ouvindo Racionais, ter a possibilidade de aprender diretamente com cada um dos integrantes dentro de uma faculdade é algo histórico, é o acolhimento e autoestima de um povo preto que ainda luta por sobrevivência tendo um porta voz num lugar de excelência. É sentir que pela primeira vez estamos conseguindo alcançar os mesmos espaços e mostrar que o papel de “vilão e mocinho” da nossa sociedade é distorcido, que nem sempre o “bandido é mau“, mas que a estrutura racista da nossa sociedade nos corrompe dia após dia.
E pra quem não pode acompanhar a aula aberta com Racionais ao vivo, se liga em como foi: