A história do Brasil por um olhar afrocentrado: Projeto Querino fala sobre protagonismo negro na construção do país
Quem é de quebrada e sempre estudou em escola pública, sabe que por muito tempo durante as aulas de história ouvimos que o nosso país foi “descoberto” lá em 1500 e foi com esse tipo de informação que a nossa sociedade foi construída ao longo dos anos, sem realmente entender a sua origem e tudo aquilo que continua impactando os dias atuais, como o racismo, por exemplo.
Pensando nisso durante uma feira literária, lá em 2018, o jornalista Tiago Rogero se sentiu incomodado com o fato de mesmo adulto não conhecer quase nada sobre “A Revolta dos Malês” (uma revolta dos povos escravizados que ocorreu durante o Império do Brasil, em Salvador, capital da Bahia, em 1835) e isso foi o que lhe deu gatilho o suficiente para criar algo totalmente novo com a história do Brasil que ninguém conta nas escolas. Pra começar, a história do Brasil não inicia com sua descoberta e sim com sua invasão. Após a chegada dos Portugueses, os povos originários foram massacrados. Isso sem contar o tráfico de milhões de africanos que tiveram vida e sonhos roubados para serem escravizados aqui no nosso país.
Daí que lá em 2020 surge o “Projeto Querino“, um podcast inspirado nisto tudo e no “The 1619 project”, projeto multimídia lançado em 2019 pelo jornal “The New York Times” e liderado pela jornalista Nikole Hannah-Jones, que fala sobre as consequências da escravidão e as contribuições dos negros norte-americanos. O podcast de Tiago, cujo nome homenageia Manuel Querino, intelectual e abolicionista que realizou estudos pioneiros sobre o papel dos africanos e de seus descendentes no desenvolvimento do país, conta a história do Brasil por um olhar afrocentrado, que mostra não só todo sofrimento e crueldade dos escravizadores, mas também toda contribuição da população preta e indígena para construir o Brasil de hoje.
Ao total foram mais de 300 anos de escravidão e mesmo após a abolição da escravatura lá em 1888, as coisas não ficaram boas pra população preta e indígena, que no final tiveram que se refugiar e iniciar toda sua vida do zero, sem dinheiro e sem oportunidades, o que gerou consequências que refletem até hoje na nossa sociedade. E pra contar essa história, o Querino fez questão de usar uma linguagem simples, que conecta o ouvinte desde o primeiro episódio, não só pela sua narrativa, mas pela forma em que ela é abordada.
Para a construção do projeto, foram necessários 12 meses de uma grande apuração, pesquisa documental bibliográfica, em áudio e imagens feitas por historiadores e jornalistas, que através de uma linguagem simples conseguiram acessibilizar essas informações para todos os públicos e tratar um tema tão pesado como o racismo de uma forma leve e compreensível. No total foram dois anos e oito meses até que esse trabalho fosse lançado e só foi em agosto de 2022 que ele passou a fazer parte do dia a dia da galera.
Com o total de nove episódios, o Projeto Querino conseguiu se destacar e chamar a atenção do público, não só por levantar a temática racial no país que foi o último a abolir a escravidão, mas também por trazer uma perspectiva que nunca havia sido trabalhada antes em um podcast, a perspectiva da população negra, que não conta apenas quem foram os vilões da nossa história, mas também quem foram os verdadeiros heróis que tiveram suas existências apagadas da maioria dos livros. Em cada um dos episódios, diversas temáticas são abordadas, como a chegada dos povos escravizados, música, trabalho doméstico, educação, religião e muito mais.
“Um viés que é super importante pra gente e que eu acho que faz toda a diferença é o fato do Querino não ser só afrocentrado, mas conduzido por pessoas negras, é uma equipe majoritariamente negra e que a gente não conta a dor pela dor, sabe? A dor entra, mas tem um motivo para ela entrar e ela não entra sozinha. No mesmo episódio que tem dor, tem protagonismo negro. O episódio do trabalho doméstico tem lá situações de dor, porque o trabalho doméstico ainda tem uma condição muito atrelada ao período da escravidão, mas é um episódio sobre como as mulheres negras conseguiram depois de 70 anos equiparar os direitos das trabalhadoras domésticas ao das demais profissões. É um episódio sobre Laudelina de Campos Melo, uma das maiores intelectuais, uma das maiores forças políticas que o Brasil já teve. Então é isso, mesmo quando a gente fala de dor e a gente só fala de dor, quando é importante, quando é justificável, a gente tá falando de protagonismo também de agência, de força, de potência, que que faz toda a diferença, eu acho”.
Desde que foi lançado, o Projeto Querino tem alcançado cada vez mais visibilidade, mas muito além de números é importante ressaltar o impacto social do projeto na sociedade. Tiago conta que uma de suas maiores satisfações com este trabalho é receber mensagens de pessoas relatando como o podcast conseguiu transformar seu olhar sobre o mundo, que elas se sentem mais potentes, empoderadas e que estão recomendando o conteúdo para amigos e familiares. O jornalista também conta que tem recebido muitas propostas para transformar o podcast em uma obra audiovisual, mas afirma que essa ideia é algo que ele tem resistido no momento, porém não deixa de reconhecer o alcance que a obra poderia vir a ter. No momento, além do podcast, o projeto também conta com conteúdos exclusivos que estão sendo publicados pela Revista Piauí, que aproveitou o Mês da Consciência Negra para disponibilizar todas as matérias referente ao Querino de forma gratuita para o público.
E pra quem espera por uma segunda temporada, saiba que essa possibilidade não está dentro dos planos, pois ao ver de Tiago Rogero, o Projeto Querino conseguiu cumprir a sua missão. Mas ele já adianta que nos próximos meses quer explorar formas de contar essas histórias em outros formatos e ainda revela que em breve o projeto irá virar um livro. Sua proposta é fazer com que o Projeto Querino alcance cada vez mais pessoas e um dos seus intuitos é disponibilizar esse conteúdo numa forma em que professores possam usá-lo em sala de aula.
“Definitivamente o podcast e as publicações na revista Piauí foram só o começo, a gente quer muito trabalhar no Querino nos próximos anos e ver tudo mais que pode surgir daí. Histórias não faltam para ser contadas né, infelizmente, porque isso só demonstra o quanto de coisa que a gente não aprendeu e que a gente deveria ter aprendido”.
Apesar do resultado positivo em relação ao público, Rogero fala que no início não esperava que o podcast teria todo esse sucesso, isso após ter lançado outros dois trabalhos do mesmo tema, mas que não teve a visibilidade esperada e principalmente devido ao mito da democracia racial aqui no Brasil, que cria sua população para pensar que não existe racismo no país.
“Muitas pessoas negras resistem a consumir esse tipo de conteúdo às vezes por causa disso tudo que está sendo enxertado na cabeça delas pelo pelo nosso meio né? Então me surpreendeu muito o resultado do Querino, por mais que seja um esforço muito grande, que a gente tenha trabalhado muito. Mas por exemplo com o “Vidas Negras” que é um podcast que eu fiz antes do Querino, tem muita pesquisa envolvida, muito carinho, é muito bem feito, mas não teve nem de longe esse resultado de audiência. Acho que contribui muito o fato dele se chamar “Vidas Negras”, que foi algo que no Querino a gente não quis fazer de forma proposital, porque mesmo pessoas negras que gostariam de ter ouvido “Vidas Negras”, não ouviram por ler o nome e pensar que era “mimimi”.A gente sabe que existem pessoas assim entre os nossos, só que elas gostariam do conteúdo, passariam a pensar diferente, mas o nome já era uma barreira”.
Mesmo com todas essas questões, Tiago percebeu que o projeto iria se tornar grandioso quando finalizou todo o processo de construção do terceiro episódio, “Chove Chuva”, que fala sobre a música brasileira e toda influência da diáspora africana com muito foco na obra de Jorge Benjor. Sem nenhum receio, o jornalista afirma que este foi o melhor episódio de podcast que ele já realizou e que é a toa que o público pode sentir todo carinho que foi depositado ali.
Diante da temática racial abordada e toda intolerância promovida pelas eleições presidenciais aqui no Brasil neste ano, Rogero conta que teve que se preparar para possíveis ataques racistas quando lançou o podcast, pois havia acompanhado o racismo que Nikole sofreu quando lançou “The 1619 project” e que esperava por ações semelhantes aqui no Brasil. Então, o jornalista tirou do seu perfil todas as informações sobre os seus familiares, fotos de sua esposa, mãe, irmã, parou de marcar a galera nos stories, pois sabia que nas ruas com o atual governo as pessoas se sentiram autorizadas a expor toda sua violência. Ainda assim, constantemente Tiago recebe alguns comentários racistas nas redes sociais, mas afirma que muitas vezes nem acaba lendo ou que já apaga.
Outro detalhe que é importante ressaltar, foi a participação especial da jornalista que serviu de referência para a criação do Projeto Querino, Nikole Hannah-Jones, no podcast. Com muita empolgação, Tiago conta que foi incrível recebê-la e que desde o início a jornalista se mostrou interessada pelo trabalho que estavam fazendo. Rogero revelou que Hannah-Jones foi uma das poucas pessoas fora da equipe do Querino que sabiam da existência do projeto mesmo antes do seu lançamento e que sempre se mostrou disposta a ajudar da forma que pudesse.
Além de Tiago Rogero, para a criação e desenvolvimento do Projeto Querino foram necessárias cerca de 40 pessoas. Na equipe principal temos apoio do Instituto Ibirapitanga, consultoria em História de Ynaê Lopes dos Santos e consultoria narrativa de Paula Scarpin e Flora Thomson-DeVeaux, da Rádio Novelo.