Álbum “Funk Brasil” do DJ Marlboro completa 30 anos
Estamos em 2019, ano em que o álbum “Funk Brasil”, do DJ Marlboro, o primeiro LP de funk carioca lançado, completa 30 anos de existência. Este é um marco para o movimento funk carioca e também para o DJ Marlboro, que lá nos anos 1980 previu o funk se espalhando. Trinta anos depois, com o movimento se espalhando por São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santos, Pernambuco e outras capitais, a profecia de Marlboro parece ter se concluído. Conheça mais dessa história agora.
Um certo dia no ano de 1986, o antropólogo Hermano Vianna presenteou o DJ Marlboro com uma pequena bateria eletrônica Boss DR-110, tirada do estúdio do seu irmão Herbert Vianna, do Paralamas do Sucesso. Hermano estava estudando a crescente cena funk carioca em seu mestrado em sociologia e levou uma bronca do seu professor, que alertava que aquele simples presente poderia alterar radicalmente a história do movimento e das pessoas envolvidas com ele. “É como dar um rifle a um chefe indígena”, comparou o professor.
E a história realmente mudou. Três anos depois, DJ Marlboro lançava o álbum “Funk Brasil Vol. 1”, considerado o marco zero do funk brasileiro. O disco está completando 30 anos de vida e Marlboro está fazendo uma série de apresentações para comemorar o aniversário. No domingo (14) rolou o primeiro desses shows, com participações dos MCs Abdullah, Cidinho e Doca, MC Andinho, Julaine e MC Cacau e os ingressos da Casa Imperator estavam esgotados.
Quem escuta “Funk Brasil” hoje pode achar o som datado, mas o álbum marcou época e foi fundamental para o desenvolvimento da música das quebradas brasileiras. Até então os bailes eram agitados pelo som de mestres do hip hop americano como o Afrika Bambaataa. Por vezes rolavam músicas de outros países, como “Music Non Stop” dos alemães do Kraftwerk, conhecida entre os funkeiros como “Melô do Porcô”. Algumas DJs e equipes de som como a Cash Box misturavam a batida importada do electro e do miami bass com samples de percussão brasileira. Mas de modo geral, não havia MCs cantando letras em português, dando uma cara especial ao funk brasileiro.
Marlboro, atualmente com 56 anos, queria transformar essa realidade e começou a pensar em estratégias para nacionalizar essa música que vinha do exterior e já embalava milhares de festas. “Eu percebi que a música não podia ser falada, tinha que ser cantada. E o tema tinha que ser irreverente. O Brasil é naturalmente brincalhão e alegre”, diz o DJ.
“Nos bailes tocava mais o instrumental das músicas, que era o lado b do vinil. Eu não podia fazer instrumental porque eu tinha que me comunicar, então a maneira de fazer era se aproximar da nossa canção”, explica Marlboro. “Comecei a observar o forró, o samba, a música folclórica e percebi que vários elementos da nossa cultura eram melódicos. E se você pegar a melodia do ‘Rap da Felicidade‘, você vai ver que a melodia é muito similar a de um samba enredo. Se tu pegar a ‘Melo do Bêbado’ vai ver que a melodia é um forró. Esse era o caminho pra nacionalizar o negócio”.
Mas o caminho entre a ideia e o lançamento do álbum foi duro. Marlboro pensava em produzir o disco de forma independente, mas o seu amigo Cidinho Cambalhota — que canta a faixa de abertura do álbum, o “Rap das Aranhas” — trabalhava na Polygram e o convenceu a levar o disco para a gravadora, que daria ao DJ um teclado como forma de pagamento pelo seu trabalho como produtor musical do LP.
O funk era uma música nova. Na época, o mercado fonográfico brasileiro ainda não entendia essa linguagem musical eletrônicas, não sabia trabalhar com MPCs e equipamentos do tipo. Os técnicos do estúdio não entendiam a proposta, pois confundiam o batidão com o funk americano de James Brown. Marlboro relembra: “Eles me disseram: ‘Funk pra mim tem metal, tem baixo, bateria. Pode contratar os músicos, não economiza não porque a gravadora te aceitou’. Até o momento em que eles disseram: ‘Estamos lavando nossas mãos para o que vocês estão fazendo’. Era exatamente o que eu queria. Sou capricorniano, muito teimoso. Não consigo fazer uma coisa que eu não acredito”.
Marlboro queria produzir um som que tivesse conexão com aquilo que tocava nos bailes e apresentar aquele mundo a um público mais amplo. Ele retratou a onda dos “melôs”, que eram músicas versões aportuguesadas dos raps de fora. A música “You Talk Too Much” do Run DMC virava “Taca o Tomate” ou “Melô do Tomate”, por exemplo. “‘I’ll Be All You Ever Need” do Trinere era “Ravióli eu Comi” e “Whoomp! (There It Is)” virou “Uh! Tererê”.
Deste modo, os maiores hits do disco foram o “Melô da Mulher Feia”, cantado pelo MC Abdullah sobre a base de “Do Wah Diddy” do grupo americano 2Live Crew, e o “Rap das Aranhas”, uma versão do “Rock das Aranhas” de Raul Seixas cantada pelo Cidinho Cambalhota. O LP vendeu mais de 250 mil cópias e a série “Funk Brasil” continuou até o terceiro volume, indo além das fronteiras do Rio e dialogando com artistas de outros locais. O “Funk Brasil Vol 3”, por exemplo, tinha MCs de Belo Horizonte. Em uma entrevista de 1991 ao Jornal do Brasil, Marlboro dizia estar “em contato com equipes de som profissionais em Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba e outros estados do país”.
“O livro do Hermano Vianna chama-se ‘Mundo Funk Carioca’. Eu poderia ter ido na mesma linha e colocado o nome do disco como funk carioca, mas coloquei Funk Brasil porque na minha cabeça ia muito mais além. Eu não queria que o funk fosse carioca, queria que fosse brasileiro”, ressalta.
Três décadas depois, a projeção do produtor deu certo. O funk tornou-se mesmo brasileiro, com toda a diversidade que existe no nosso país, com uma cara diferente em cada estado. Já mostramos como é o Funk de Minas Gerais, o Funk do Espírito Santo, o Bregafunk de Recife, entre outros exemplos. O “Funk Brasil” foi uma semente que permitiu essa expansão.