Educação

Das escolas públicas para os cursinhos pré-vestibulares: as minas no ensino superior

29.10.2019 | Por: Fernanda Souza

O ENEM é o tipo de processo que muda muita coisa na vida de quem escolhe os estudos e uma vida acadêmica, ainda mais se você for um jovem ou adolescente de quebrada. As pessoas recorrem aos cursinhos pré-vestibulares ou grupos de estudos para entrar na corrida de um sonho. Muita gente não imagina como é difícil essa trajetória com obstáculos, por isso troquei ideia com três minas que vivem esse corre pra mostrar aqui no Portal KondZilla, chega mais!


Foto: Jeferson Delgado

O que infelizmente dificulta o acesso de muitas pessoas da periferia ao universo acadêmico é a falta do preparo no ensino médio das escolas públicas. Basta perceber que em 4 anos o investimento em educação no Brasil caiu em 56%. Existe uma defasagem na qualidade e nas estratégias para possibilitar a entrada de jovens negros e periféricos nesse universo, não é atoa que muitos movimentos sociais lutam pela equidade por meio de políticas públicas que possibilitem o acesso.

Trocando um papo com Nathalia e Lorena pude relembrar a minha época de cursinho no ano de 2012. Infelizmente, nossos perfis são semelhantes: jovens negras ou periféricas pressionadas a não ser estatística, entre o sonho e a sobrevivência econômica, concorrência com gente que tem grana, morando em extremos, dentre outros. Bom, mas bora pro papo porque vocês entender melhor essas narrativas.

Nathalia Oliveira, de 20 anos, do Grajaú, veio de escola pública com condições precárias. Ela conta que a defasagem era grande e ensino fraco, por isso está fazendo cursinho pra ter a chance de entrar numa universidade pública e cursar gestão ambiental. Periférica e negra, Nathalia me disse que o esforço e a cobrança são bem maiores.

Perguntei como ela se sentiu ao ter contato com o cursinho, já que nele buscava suprir o que faltou na escola. “Foi triste, me senti perdida. Conteúdos que nunca tinha estudado, maioria dos alunos vindos de escolas particulares. Pensei em desistir por me sentir inferior”, relata.

Ainda, sabendo do quanto isso abala o psicológico de um jovem, principalmente por saber que o processo seletivo pode mudar toda uma trajetória, Nathalia fala sobre sua saúde mental. “Embora agora eu veja o mundo com outros olhos e tenha pensamento crítico, a pressão aumenta todos os dias, as crises de ansiedade estão presentes em todos os momentos”.

A jovem acrescentou que é revoltante ter que pagar cursinho. E quem não ficaria, afinal? “Tive que abrir mão de muita coisa pra poder pagar o cursinho sendo que tudo que estudo lá a escola tinha o dever de ensinar”.

Lorena Santos, 18 anos, é da quebrada Vale das Virtudes (Zona Sul), nova na idade, mas com uma visão muito forte sobre a realidade dos estudos. Quando perguntei sobre sua caminhada na escola pública, ela mencionou o quanto o sistema nas quebradas não prepara os adolescentes para as ideias de estudo. “A escola vira uma rotina chata em que você não tem vontade de aprender. Somos ensinados a terminar a escola, mas não aprender tudo o que ela oferece”.

Medicina veterinária é o curso que a Lorena quer estudar, inclusive um daqueles cursos de difícil acesso pra quem é de periferia, por isso o jeito é se jogar nas públicas porque desenrolar a grana não é uma possibilidade. Portanto, o cursinho foi a escolha dela, bem como da Nathalia, a minha e de tantas outras como nós.

“Ele foi muito importante porque desenvolvi coisas que não foram trabalhadas nas escolas. E é foda isso pois tem pessoas que só vão pra dar aquela relembrada, e outras que passam 5 anos, principalmente os que prestam pra medicina, é cansativo”, comenta a jovem sobre a importância do cursinho na vida dela e de outras pessoas.


Aniversário de 31 anos do Núcleo de Consciência Negra

Esse depoimento é forte, pois mostra como o psicológico das pessoas ficam abalados. Pensa você ser de quebrada e perceber que não vai “relembrar conteúdo”, mas sim ir atrás de anos de ensinamentos que deveriam também ser seus. Isso reflete muito no cursinho, ambiente que também pode ser extremamente estressante.

Perguntei se ela também acha que tem fazer um esforço maior pra sair na frente desse jogo, assim como a Nathalia. ‘’Com certeza, mas depende dos lugares. Por exemplo, eu não sentia isso no cursinho Núcleo de Consciência Negra, na USP, porque ali realmente tinha gente de periferia que queria as mesmas coisas que eu. Agora é diferente quando vou fazer simulados ou o próprio vestibular, pessoas com camisetas de outros cursinhos mais conhecidos e caros. Como se tudo que estudei não chegasse perto daquelas que dizem ‘ vou roubar sua vaga’ ou ‘ as melhores  cabeças’. Isso tudo causa insatisfação total’’, desabafa.

Por fim, bora falar das conquistas? Hany Gabriele, de 21 anos é bolsista 100 % no curso de Publicidade e Propaganda na Universidade Anhembi Morumbi. Sua bolsa é uma vitória conquistada pelo ENEM. Cria da Zona Leste, também fez cursinhos e passou por todos perrengues.

‘’Tive que correr 5x mais do que quem sempre teve um ensino bom e tudo dentro de casa pra poder subir na vida. Estamos preocupados com o que vamos comer e vestir amanhã e não no que podemos investir!’’, relata Hany sobre a busca de seu sonho.

Ela acrescenta que o cursinho é essencial pois a atenção e o foco no vestibular são bem maiores do que em qualquer escola. ‘’Se não fosse o cursinho acredito que não teria chegado até aqui. É sempre bom dar uma pesquisada, nessas pesquisas eu achei vários cursinhos pra quebrada, ou alguns que ofereciam bolsa pra pessoas sem grana/com baixa renda’’.

Uma coisa é certa, por mais ruim que seja pensar que um dos motivos dos cursinhos existirem é pela falta de assistência de escolas públicas, a ideia é uma forma de muita gente ir atrás do sonho dos estudos. Esse texto não é pra romantizar o esforço de ninguém, mas sim tornar como exemplo pessoas reais.

Além disso, tentar quebrar mais uma vez aquela história triste de que todos somos iguais ou de que é só ‘tentar que dá’. Pode dar certo, e de fato dá quando os quebradas entram com o pé na porta.

Um salve para  as Nathalias, Lorenas e tantas Hanys que estão no dia a dia resistindo. Que as narrativas dessas minas possa te inspirar, então pense em novas possibilidades. Você também pode ser a referência de alguém.

 

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