Da Baixada Santista, Mu540 e Kyan unem funk, rap e trap criando um som único
Não chega a ser uma novidade saber que as favelas vem cantando trap, a diferença é que aos poucos, o som de fora vem criando uma cara própria, misturando as referências de funk e rap ao som genuinamente americano. Alguns artistas de São Paulo já caíram de cabeça nessa febre, como o Hyperanhas, mas a dupla Kyan e Mu540 conseguiu criar uma sonoridade própria. Diretamente da Baixada Santista, os dois crescerem com a influência do funk consciente, rap e agora a unem a influência de sons globais na música e estética do litoral paulista.
Renan MC cresceu na Praia Grande, Baixada Santista, ouvindo os relíquias locais do funk ostentação, como MC Lon, Boy do Charmes e Neguinho do Kaxeta. Apadrinhado pelo MC Pedrinho Jr., em 2014 Renan começou a escrever e cantar suas músicas. Ele até fez certo sucesso na área, mas nunca conseguiu estourar como queria. Após seis anos de trabalho, ele quase desistiu da música em 2019.
“Teve momentos em que eu achei que ia me tornar um MC famoso. Tive uma oportunidade de fazer uma audição numa grande produtora de São Paulo e não consegui passar. Rodei entre alguns empresários do funk e também não deu certo”, relembra. “Eu fiquei bem desmotivado e estava prestes a desistir de cantar”.
Foi então que um amigo, o videomaker Lucas Zetre, propôs renovar e tentar de novo, desta vez deixando de lado o funk e partindo para o trap. E foi assim que o Renan MC renasceu como Kyan. Aliando-se ao produtor MU540 (se pronuncia Musão) — que já era conhecido por misturar trap, funk e outros gêneros com o estilo “favela trap” —, ele passou meses estudando o novo ritmo até entrar no estúdio e sair com “Mandrake“, sua primeira música no trap, que logo chegou nos ouvidos de ícones do hip hop nacional, como Tasha e Tracie e Don Cesão, fundador da produtora Ceia Ent.
“A primeira música que fiz no trap, sem conhecer ninguém e sem ninguém me conhecer, já chegou no Don Cesão”, comemora Kyan, que atualmente faz parte do time da Ceia, ao lado de nomes como Djonga, Clara Lima e Febem.
Desde então, Kyan sempre acompanhado de Lucas Zetre e MU540, vem soltando músicas que misturam levadas de trap, elementos do grime e drill da Inglaterra e o funk brasileiro. Dois hits recentes, “Menor Magrinho” e “Tropa da Lacoste”, tem samples de músicas do MC Magrinho e do MC Lan, respectivamente. O som de Kyan é uma mistura de movimentos musicais periféricos de todo o mundo, sem se prender a rótulos pré definidos.
Produzindo desde 2012, Mu540 começou a misturar funk com outros estilos por diversão. “Uma vez fiz remix o de “Dom Dom Dom”, do MC Pedrinho, com “Animals”, do Martin Garrix. Eu nunca ri tanto na vida. Talvez essas ideias tenham surgido porque eu queria fazer algo divertido e eu achava que seria uma surpresa para quem escuta”, diz o DJ.
“Eu sou um artista e não faço um gênero específico. Tô fazendo uma arte do hip hop, mas da minha forma”, afirma Kyan. “O MU540 já era conhecido por misturar funk com outras parada, como garage, umas paradas mais dele. Então a gente já não se rotula em um gênero”, afirma o cantor, que elenca o funk como sua maior referência, especialmente os MCs de ostentação e consciente da Baixada. “Desde os seis anos de idade eu já escutava Duda do Marapé, MC Barriga, MC Careca, Toto e Cabeça… Desde menorzinho eu absorvo tudo isso”.
Para MU540, a parceria funcionou pela dedicação e perseverança de todos os envolvidos. “Deu certo porque a gente quer fazer dar certo e levar a música como nosso ganha pão. E a gente também curte praticamente as mesmas coisas. Toda nossa equipe. Todo mundo na mesma fita com comprometimento”, conta MU540.
Um tema muito abordado por Kyan em suas letras é a periferia e as desigualdades sociais. Em “Menor Magrinho”, ele celebra a sua vitória sobre os estigmas e o sucesso como artista: “Discriminado no preconceito/ Hoje o pós-conceito é nós”. Nos versos de “Nóis é Ruim e o Cabelo Ajuda”, ele ironiza aqueles que tentam se apropriar da cultura da favela: “Favelado que usa grife e os grife quer ser os favela”.
Sobre esse último verso, ele conta que quando chegou no trap a moda era usar roupas de grife. “Era só high fashion, coisa que era inacessível pra gente. Quando é que favelado vai poder usar Gucci ou Off White? Quando chegamos com ‘Mandrake’, falamos sobre Nike, Lacoste, Tommy. Roupa que ainda é cara, mas quem mora na favela faz um corre para conseguir e se sente muito bem tendo. A gente acabou fazendo o jogo virar. Os boyzão, os playboy quer usar nossas marcas para se parecer com a gente”, explica.
Por sinal, Kyan considera “Nóis é Ruim e o Cabelo Ajuda” como a música favorita do seu repertório. Um dos motivos é o valor sentimental. A faixa foi escrita em janeiro de 2018, (quando ele ainda era o Renan MC) e foi publicada como prévia nas redes sociais. A dona Patrícia, mãe de Kyan, curtiu o som e ouvia sempre, até que aprendeu a cantá-la. É a voz dela cantando que ouvimos no fim da música.
Mas em 2020 o câncer de mama que Patrícia havia descoberto dois anos antes, piorou e a mãe de Kyan ficou debilitada. Por muito tempo lutou pela vida até que faleceu em abril. Ainda assim, nos seus últimos dias ela ainda lembrava da letra e cantava a música, mostrando o orgulho que sempre sentiu pelo filho. “Ela não lembrava de muitas coisas, mas lembrava da música. E até quando ela mal conseguia falar, ela cantava minha música. Eu já achava uma das minhas músicas mais da hora, mas depois disso ela passou a ter um valor sentimental ainda maior. É como se fosse a última coisa que eu vi a minha mãe falando de mim”, lembra o MC.
A mãe de Kyan tinha orgulho do seu filho e sabia, antes de todo mundo, que ele e sua arte tinham um enorme potencial. Dois meses depois após sua morte, “Nóis é Ruim e o Cabelo Ajuda” virou clipe e tornou-se um hit com dois milhões de visualizações — com aquela mesma letra de 2018 que a dona Patrícia gostava de cantar. Kyan homenageou a memória de sua mãe e está voando enquanto artista. O talento que antes era percebido por sua mãe e mais uns poucos agora está mais evidente do que nunca e à vista de todos.