Comportamento

O Rio Parada Funk 2017 foi um ato de resistência do funk

04.10.2017 | Por: Guilherme Lúcio da Rocha
Foto: Matias Maxx // Portal KondZilla

“Mermão, será que tem como eu entrar com a minha filha nesse evento aí?”, pergunta Maurício, pai da Ana Clara, dentro do carro junto com sua filha e esposa. Eu, parado em frente ao portão que dá acesso ao Sambódromo da Marquês de Sapucaí, respondo que sim, desde que ele adquirisse o ingresso. Se existia alguma dúvida que o Rio Parada Funk é o maior baile funk a céu aberto e que agrada todos os públicos, acabou ali, às 9h10, do dia 1º de outubro. Agora vou contar o que rolou no Rio Parada Funk 2017, que mesmo com todas as dificuldades impostas, trouxe alegria pros mais de 25 mil presentes no último domingo.

Já falamos do Rio Parada Funk aqui no Portal KondZilla, mas é bom recapitular: o “maior baile funk do mundo” celebra a cultura do funk carioca por meio das equipes de som, responsáveis por darem o pontapé no que hoje conhecemos como baile funk, fazendo uma espécie de linha do tempo, tocando desde o som raiz, o miami bass, passando pelo tamborzão e chegando ao 150BPM e o arrocha-funk dos dias de hoje. Este ano, em sua sétima edição, o evento aconteceu na Apoteose – templo do carnaval carioca.

Cheguei no local perto das 9 horas e, depois de passar a visão pro Carlos e sua família, entrei na Sapucaí junto às primeiras pessoas para acompanhar a montagem dos “paredões” de som. Além da galera da organização, que já corria pra lá e pra cá pra deixar tudo nos trinques.

Com previsão de início para às 10 horas, a parada acabou atrasando. As equipes de som já se aqueciam e, por volta das 11h30, o calor estralava até na sombra, o que deixou o pessoal do lado de fora meio impaciente. O que não estragou em nada a festa, os portões foram abertos às 12h30 e a Apoteose começou a ser tomada por uma legião de funkeiros. Era uma espécie de “procissão do funk” e tinha gente de todo tipo: jovem, adolescente, famílias reunidas e trabalhadores do funk.

A galera chegava aos poucos, e enquanto o baile ia ficando cada vez melhor, aproveitei para trocar uma ideia com algumas equipes de som e conhecer um pouco mais daquela cultura que deu início ao baile funk. Pude perceber que o carioca dá muito valor a essa história, e as equipes são uma espécie de time de futebol, sem a necessidade de você “torcer” para uma só.

Falei com Marco Antônio Baranda, 61, o “Marcão”, responsável pela equipe de som “Cash Box“, uma das mais tradicionais do Rio de Janeiro e que, até os dias de hoje, se mantém fiel ao passado tocando apenas disco music e miami bass.

“Tudo começou em 19 de janeiro de 1974 – sim, eu lembro exatamente da data”, explica. “E estamos aí até hoje, nos mantendo fiéis ao começo do funk”. Tradição é tradição, e não é a toa, e nem de ontem, que a Cash Box tem moral no rolê. A equipe está até hoje rodando o Rio de Janeiro fazendo festas – na sua maioria, de flash back.

“Meu pai e meu tio eram técnicos e entendiam de som. No início, nós – eu e mais umas 20 pessoas – fizemos nossas primeiras caixas de som sozinhos, na mão mesmo. Depois, conseguimos uma ajuda da Gradiente e melhoramos a qualidade”, conta Marcão, que foi DJ da Cash Box até 1988, quando seu irmão faleceu e ele decidiu trabalhar apenas nos “bastidores”.

Essa não foi a primeira vez que a equipe participou do evento, e Marcão faz questão de ressaltar a importância do Rio Parada Funk. “Principalmente no Rio de Janeiro, eu considero o baile funk um prolongamento do carnaval, pela questão da festa, da dança, da alegria… Um evento como o Rio Parada Funk faz com que a história fique eternizada, que o pessoal saiba da importância de quem trilhou e está trilhando esse caminho, e nada mais sugestivo do que isso ser feito na passarela do samba”.

Com todas as equipes aquecidas, o som rolava solto. Sabe aquela coisa do “tamo junto e misturado”? Então, no Rio Parada Funk funciona assim. Todas as equipes tocam seu som simultaneamente e, por mais incrível que pareça, você conseguia ouvir claramente o som de cada uma, de forma separada e, na medida do possível, harmoniosa.

Visão do palco principal, lá pelas 16 horas. Foto: Matias Maxx // Portal KondZilla

As equipes ficaram enfileiradas na passarela da Sapucaí, como se fossem “stands”. O público, ao chegar no evento, passava uma por uma, até chegar na Praça da Apoteose, onde ficou o palco principal. Tanto o palco principal, como as equipes de som, não pararam um minuto, com DJs, MCs e apresentadores se revezando em manter a galera entretida durante as mais de oito horas de evento.

De início, o que mandava era o miami bass “puro” e o freestyle. Se a ideia da festa era contar a história do funk, nada melhor do que começar com os ritmos que influenciaram a criação do funk carioca, deixando as mais atuais pro final.

Com um público majoritariamente adulto e bem distribuído entre homens e mulheres, a estética da galera era de impressionar, muito pela pluralidade dos estilos. Lógico que, por conta do calor, o pessoal no Rio curte roupas mais confortáveis, mas também tinha uma turma portando uns kit da Cyclone, Oakley e afins.

Quem chegasse ali na Apoteose, por volta das 14 horas, momento que o baile começou a ficar gostosinho, não imaginaria que o evento, por muito pouco, não aconteceu. O Rio Parada Funk, em 2017, foi uma prova de sobrevivência. Corri atrás do GrandMaster Raphael, curador e figurinha carimbada no evento, para entender sobre as dificuldades para realizar o evento nesse ano tão complicado.

“Xará, cê não tá nem ligado [sobre as dificuldades do evento]. Há duas horas, quase que não rola o Rio Parada Funk 2017. Mas a gente tá aí pra resistir, né?”, lembra o produtor que tem pelo menos 30 anos de história no funk. “E não é de hoje. Graças a Deus tá rolando tudo bem e esse ano será mais um grande espetáculo”. Mas o que seria diferente em 2017? O que seria esse grande espetáculo? “Esse ano tem muita galera jovem, tem muita interação com as novidades, muita equipe tocando 150BPM, tocando arrocha-funk, além do melody, do miami bass, os clássicos né. Enfim, Rio Parada Funk tem tudo e mais um pouco”, concluiu GrandMaster.

GrandMaster Raphael (de boina vermelha). Foto: Matias Maxx//Portal KondZilla

Definitivamente: o Rio Parada Funk tem tudo e mais um pouco. Enquanto a Cash Box, que já falamos, tocava seus melodys e funks da antiga, a equipe Chatubão, por exemplo, foi logo pros 150BPM. O ritmo louco rolava solto por lá e atraia não só a galera mais nova, mas a antiga também. Matosão Fernandes, um dos responsáveis pela equipe, corria pra lá e pra cá pra deixar tudo nos trinques. “Essa correria vale a pena pelo funk. Tá no sangue, eu amo isso”, disse, esbaforido. “Nosso público é uma galera mais jovem, que curte o funk consciente e a novidade do 150BPM”, completou.

O movimento do funk começou no Rio de Janeiro, e por isso representa a cultura na forma crua do que conhecemos. Mas no mundo digital em que vivemos hoje, não existe mais as barreira regionais que existiam há 20 anos. MC Kevinho e MC Lan também fazem a cabeça da galera carioca, que adaptou o passinho dos maloka com uma pitada de movimentos mais acelerados.

Com o evento fervendo, foi o momento ideal para o pessoal subir no palco e mandar o papo reto: o funk é cultura e deve ser respeitado. William e Duda, autores do “Rap do Borel” e que retomaram as atividades recentemente, foram um dos mais diretos e fizeram questão de destacar: “para existir o presente e garantir o futuro, é preciso lembrar do passado”.

“Estamos vivos e somos imortais. Somos pré-históricos já, a velha guarda do funk”, dispara o MC Duda do Borel. “E agora [a responsabilidade] é dessa nova galera colocar na pista o talento deles, sem desmerecer ninguém e respeitando os mais velhos”.

Na ordem: William e Duda. Foto: Matias Maxx // Portal KondZilla

O evento tem como um dos lemas “traga a sua família”. Com organização e estrutura, o evento não deu maiores dores de cabeça pra ninguém – tarefa pra lá de difícil se considerarmos o som alto, o calor e multidões. Reginaldo Ribeiro, 38, decidiu levar a esposa, Andreia Vieira, 37, e os três filhos Kevin, 17, Bruno, 16, e Brayan, 9, para festa.

“Eu sou da época dos bailes de corredor, de ‘Lado A x Lado B’, e nesse evento consigo mostrar para os meus filhos, que acompanham o funk de hoje em dia, como era antigamente”, conta. “O legal é que eu também consigo ver o que eles curtem hoje em dia, isso é uma troca de informações bacana”, diz Reginaldo. Bruno, o filho do meio, completa: “Vejo vídeos da antiga no YouTube, mas acho muito lento. Nem funk em 130 eu escuto mais, ou é arrocha ou é 150BPM”, disse o garoto, destacando que é fã do DJ Rennan da Penha e do MC Cabelinho.

Não era só o adolescente que curtia a mistura do ritmo genuinamente carioca com o ritmo nordestino. Sem dúvidas, o som que dominou a sétima edição do evento foi o arrocha-funk, tocado exaustivamente pela maioria das 10 equipes presentes no evento. Já falamos dessa vertente aqui no Portal KondZilla, e a galera do Rio de Janeiro tá curtindo de verdade a parada.

E uma das principais estrelas do arrocha-funk carioca tem 19 anos e se chama Iasmin Soares, a Iasmin Turbininha. DJ-produtora-MC e também co-responsável, junto com a MC Nem, por um dos maiores sucessos do momento, o “Arrocha das Amantes“, ela chegou na Sapucaí por volta das 16 horas e atravessou toda a avenida tirando foto e fazendo questão de cumprimentar cada fã que lhe abordava, algo de impressionar muita rainha de bateria por aí.

“Ah, eu gosto disso, de falar com o povo, dessa energia. Essa parada toda é muito nova pra mim”, brinca. “Pô, ano passado mesmo eu vim [no Rio Parada Funk] pra curtir, esse ano vou tocar no palco principal. Isso é muito foda”, explicou Iasmin, entre uma foto e outra.

Entre as equipes, Big Mix e a A Cuca, duas das mais tradicionais do Rio de Janeiro, prenderam boa parte do público. Também eram as duas equipes mais próximas do palco principal, onde os artistas de mais destaque no evento se revezavam, entre eles: MC Tati Quebra Barraco, Perlla, MC Maneirinho, e outros.

DJ Daddo, um dos representantes da Big Mix e que está no mercado há uns 15 anos, também trampa em São Paulo e falou um pouco da importância de se preservar a história das equipes de som.

“A Big Mix foi criada pelo DJ Marlboro há uns 20 anos e é uma das mais tradicionais no mercado, resistindo até os dias de hoje. A galera de São Paulo não tem tanta noção da importância das equipes de som, mas aqui no Rio isso é muito forte. Antigamente, existiam 200, 300 equipes, eram umas duas ou três por comunidade. Hoje, se tem 20 na ativa [no Rio de Janeiro] é muito”, explica. “Essas equipes, do final dos anos 90 e começo dos anos 2000, determinavam o que rolava no funk”, disse.

Essa mudança se deve também a questões de segurança pública, como as instalações das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) em comunidades dominadas pelo tráfico, onde os bailes aconteciam em tudo quanto é lugar e de tudo quanto é forma. Não faltam relatos de vezes em que a polícia acabou com bailes, inclusive quebrando equipamentos da galera. Hoje, por conta dos problemas de segurança que o Rio vem enfrentando, a onda de bailes funk estão voltando, como no caso da Penha e Nova Holanda, que hoje estão em alta.

Com uma pegada diferente, a equipe A Coisona chamou minha atenção pela média de idade e pela interação dos presentes. Conhecida pela promoção de bailes de corredor, a Coisona reuniu uma massa de funkeiros com idade mínima de 30 anos e que queria relembrar aqueles “bons momentos” das antigas. Claro, sem extrapolar os limites.

Só que entre aqueles marmanjos se empurrando e pulando sem parar, estavam Carlos Alberto, 42, e sua filha Maísa, de 7 anos. “O funk da antiga era bem melhor. Fui em muito baile de corredor, curti pra car*lho, e quero que minha filha escute os melodys de antigamente, aquilo que era funk”, disse o papai saudoso, fazendo questão de mostrar as camisetas – dele e a da filha – personalizadas. Ok, o funk da antiga era muito bom, mas e o atual? “É uma bosta”, resume, sem maiores detalhes. E olha, tinha muita gente acompanhando o raciocínio do Carlos Alberto no evento.

Carlos e a filha. Foto: Matias Maxx // Portal KondZilla

O dia foi passando, e já não estava tão mais claro assim. Algumas das equipes iam encerrando suas atividades e a galera rumava para o palco principal. Na correria, trombamos com o Mateus Aragão, um dos responsáveis pelo Rio Parada Funk. Seguramos ele por cinco minutinhos para um resumo sobre como foi o evento.

“Esse ano, como já conversamos antes, não foi fácil. Não dá para prever se vai dar certo ou não antes de acontecer, até porque é um evento muito grande, mas está tudo indo bem e…”. Nesse momento, sou obrigado a interromper Mateus, pois MC Smith, uma das estrelas do evento, começava a cantar. “Porra, vamos lá no palco pra ver e continuamos essa ideia lá”, diz, já saindo em direção ao palco.

Chegando lá, era difícil deduzir quem estava mais incontrolável: MC Smith ou o público. Parecendo que estava fazendo seu último show, o cantor fez tudo como se não houvesse amanhã. Pulou no público, tirou infinitas selfies e recebeu um 10 de todo o público no quesito “melhor show” (estávamos na Sapucaí, né).

“Rio Parada Funk e MC Smith é um casamento perfeito. Cantar num templo do samba e onde já passaram artistas como Bon Jovi, Elton Jhon, Whitney Houston e outros monstros, é sensacional. Foi foda mesmo”, resumiu o cantor, que mal conseguia acreditar no que tinha feito. “Porra, agora acabou a entrevista. Foi bom mesmo [o show], né?”. Sim, foi bom pra caralho.

Foto: Matias Maxx // Portal KondZilla

Logo depois, para encerrar a noite, o MC Maneirinho subiu ao palco e passou a régua no Rio Parada Funk 2017. Com certeza não foi um evento perfeito, entre os 25 mil presentes, teve uma galera reclamando das filas enormes para comprar bebida, por exemplo. Mas, colocando na balança todos os problemas e a falta de apoio que essa edição teve, no trabalho de manter viva uma cultura marginalizada, o Rio Parada Funk foi mais que o maior baile funk do mundo, foi um ato de resistência.

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