“Fui ao inferno, queimei e ressurgi das minhas cinzas”, a superação de Andreia Souza
Nesta nova edição da campanha Conte Aqui Sua História, Andreia Souza conta para nós sobre sua vida, suas dores e como ela passou por tudo sem desistir. Ela lutou contra o abandono paternal, as dificuldades da vida de uma mulher negra mãe solo e uma depressão que a perseguiu por muitos anos. Andreia é um exemplo de que as coisas podem melhorar, mesmo quando parecem que não.
“Nasci no mês de junho de 1970, sem celebração ou enxoval. Sou resultado de um descuido. Nos primeiro mês de vida, quase morri de pneumonia por ter nascido no inverno de São Paulo. Ao começar a engatinhar, me queimei com um ferro de passar que estava largado no chão, as marcas de queimadura no joelho duram até agora. Hoje falaríamos que foi negligência, mas naquela época não havia nome.
Ao aprender a falar, ainda pequena eu corria para a casa da minha querida vó Celina, pedindo ajuda porque meu pai batia na minha mãe. Era sempre assim, meu pai feriu minha mãe muitas e muitas vezes. Usuário de drogas desde os 14 anos, ele tinha ataques de fúria, vendia os pertences de casa, batia, gritava e chegou a quebrar o nariz de minha mãe. Mas esse homem me amava e dizia que eu seria um gênio.
Cansada de tanta violência, minha mãe foi embora. Me deixou com minha avó, mas a mesma tinha câncer e não podia ficar comigo. Fui morar com minha tia-avó Magale, que, na verdade, tinha criado meu pai também. Meu pai foi preso várias vezes e minha avó deixava tudo para ir visitá-lo aos domingos no Carandiru. Fui visitar; era um lugar cinza e feio, mas nas festas era todo enfeitado com flores e cores, tudo de isopor.
Paulistana nata, estudei em excelentes colégios e morava em bairro nobre. Lembro que ao voltar de férias escolares, ao perguntarem na redação sobre como havia sido o período, contei que havia ido visitar meu pai no Carandiru e todos me olharam de forma meio estranha, diferente. E eu não queria ser diferente. Na época eu era a única negra da escola.
Fora da prisão, só vi meu pai uma vez, numa saída de Natal, em que ele me deu de presente o livro “Viagens de Gulliver”, que tenho até hoje. Ele me disse que ler é saber. Quando ele saiu da cadeia, já refém da loucura, pôs fogo nas roupas que ganhou da minha mãe Magale e dias depois foi morto com um tiro na cabeça. Enfim seu sofrimento acabou. Minha avó havia falecido meses antes. Creio que ela o levou para cuidar dele e para que tivessem paz enfim.
Referente a minha mãe, tenho uma lacuna, me considero órfã de pais. Eu não me encontrava, buscava além de mim o pedaço que faltava, era como um mosaico, peças quebradas e estranhas que com esforço e criatividade a gente transforma. Criei uma personagem, me transformei em quem eu gostaria de ser. Sempre quis ser independente, morar sozinha, ser livre… Parece simples, mas no início dos anos 1990 não era.
Um dia tarde da noite, andando pela Pompeia, onde eu vivia, um homem me abordou e me fez acompanhá-lo até uma casa abandonada do bairro. Lá naquele chão sujo ele me estuprou, a única coisa que fiz foi pedir: “por favor goze fora”. Ele olhou para mim e no fim fez o que pedi. Cheguei em casa e não disse nada a ninguém. Tomei banho e agradeci por ele ter me atendido. Nessa época, não sabíamos muito sobre doenças, sobre Aids e tal, a única preocupação era ficar grávida.
Segui os rumos do meu livro de cabeceira, “Viagens de Gulliver”, não queria criar raízes, Queria conhecer o mundo, viajar, morar perto do mar. Oceanografia se tornou a opção. Meu sonho de consumo era um concurso pra entrar na Petrobras, trabalhar e me aposentar aos 40 anos. Ledo engano, na época, mulher na plataforma, nem pensar.
Tive a grande honra e satisfação de ter sido funcionária da Empresa de Viação Transbrasil. Esse foi um momento feliz de minha vida, mas me veio a depressão. Eu dormia 14 horas por dia e trabalhava. Nas minhas folgas, no máximo eu ia ao shopping, tinha compulsão por compras, principalmente por bonecas, mesmo tendo já 24 anos.
Enfim após uma tentativa de assalto traumática em SP, resolvi largar tudo e mudar para o Nordeste de vez. Já com 27 anos, comecei a almejar a maternidade. Conheci o homem ideal, me lembrava tanto o espírito livre de meu pai. Mas junto ao pacote, vinha o espírito livre, o estado ébrio e os vícios constantes.
Ao ficar grávida, voltei pra minha cidade natal. O futuro pai chegou enfim, veio morar em SP e para mim eu teria a vida perfeita e a família que não tive, mas não foi bem assim. A gravidez foi solitária, a depressão voltou. O bebê ficou 16 dias internado antes de vir para casa. Quando chegou eu nem sabia o que fazer. Nesse momento, o pai me ajudou muito, mas depois parou e eu dependia totalmente dele por não ter nenhum emprego. Logo eu, que sempre quis ser independente. Um dia por um motivo qualquer, me deu um tapa na cara. Meu primeiro impulso foi terminar. Ele acabou voltando pra Natal, no Rio Grande do Norte, mas como eu queria tanto ter uma família perfeita, também acabei voltando.
Resolvi ser o melhor pai que uma mãe poderia ser. Um dia estava sem leite pra fazer mingau pro meu filho e ele me disse pra fazer com água. Precisei pedir ajuda pra família dele e ele me mandaram fazer faxina, desprezando todo meu preparo e experiência profissional, como se eu por ser negra, não pudesse ser graduada.
Meu filho hoje tem quase 20 anos. Acho que não fui a melhor mãe, mas tentei. Para sobreviver dava aulas de Inglês, trabalhava de tradutora, recepcionista e garçonete. Como garçonete, tive o contato com as garotas que as pessoas sempre rotulam de vida fácil, mas que de fácil não tem nada, se fosse todo mundo faria.
Os garçons tratavam elas com desdém, mas eu não. Quando elas iam acompanhadas ao restaurante, elas me pediam ajuda pra traduzir coisas, pois sabiam que eu era fluente em inglês. Elas me tratavam muito bem, tinham orgulho de falar que eu era a professora delas. Dalí pra ser professora de inglês foi um pulo. Com elas, sendo professora de prostitutas, que sobrevivi e criei meu filho.
Minha depressão voltou quando Celeste, a negra mais linda que eu conhecia, morreu assassinada. O medo da morte me tocou. Fui morar na Praia de Pipa, um paraíso. Quis recomeçar, a vida me sorria, quase esqueci de todas as tristezas. Empregada, morando em uma bela casinha, com plantas, cachorro. O futuro prometia. Nisso conheci um homem da Tunísia num site de relacionamentos. Atravessei o oceano para conhecê-lo e namoramos por nove semanas e as coisas começaram a dar errado. Íamos casar e ele me abandonou e eu tinha acabado de descobrir que estava grávida. Descobri que ele mandava as mesmas coisas que mandava pra mim para muitas mulheres da América Latina. Ele ainda zombou quando descobriu que o bebê era uma mulher.
Minha filha nasceu e eu adoeci novamente. Perdi tudo. Só hoje, seis anos depois, que aceitei minha doença e busquei a cura. Posso dizer que enlouqueci, fui ao inferno. Eu queimei e ressurgi das minhas cinzas. Eu sou a Fênix.
Tento me reconstruir. Me esforço a cada dia. O ódio não me domina mais. Tenho que filtrar, eu não posso exigir que a escuridão forneça luz, mas vou banir, vou exorcizar esse escuro que insistiu em me habitar.
Não sei se alguém vai se identificar com a minha história. Mas para você que já viveu ou passa por algo parecido, resista. Não vai ser fácil, não vai ser simples. Mas passo a passo a gente consegue. Quando cair, levante. Mas não desista porque a gente tem um propósito. E mesmo os que nos fazem mal, tem um propósito na nossa vida, mesmo que não saibam. Sem eles talvez nunca conhecêssemos nossos limites e nossa força.
Continuo quebrada de grana, mas me aproximo de meu filho e minha filha a cada dia. E eu desisti de desistir. Apesar de tudo, eu acredito em dias melhores”.
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